Quando questionado por uma jornalista como se sente e o que esperava ao atingir a marca do octogésimo aniversário, o escritor Luis Fernando Verissimo defende enfaticamente ser contra a passagem do tempo, apesar do vão esforço. “A gente se distrai e, quando vê, faz 80 anos”, brinca Verissimo, seguido por um silêncio desconcertante a qualquer comunicador. A câmera observa a cena de escanteio, enquanto sorrisos são esboçados quando não há nada mais a ser dito.
Trata-se, sem dúvida, de um equívoco de classificação chamar Verissimo (2023) de apenas um documentário observacional. Assim como o escritor retratado, o filme de Angelo Defanti preza, em última instância, por uma tarefa basilar reservada à arte: o registro de situações retiradas da vida, possibilitando a eternização de momentos prosaicos e, ainda assim, devidamente esculpidos. Como cronista, Verissimo preencheu mais páginas do que o habitual, concretizando-se como ilustre autor brasileiro, sábio no ordenamento de palavras capazes de adular e tornar mais brando o ato de viver. Tal qual para uma página em branco, a crônica situa o filme no âmbito da percepção atenta dos gestos, falas e vivências atravessadas pelo tempo, curioso artífice que nos permite viver e morrer diante da vida. Não à toa, Defanti enfatiza a presença do relógio da casa do escritor e suas badaladas que ecoam pelos cômodos, demarcando sua passagem para além das mudanças climáticas e intertítulos que alertam a tão aguardada celebração octogenária. Mais do que isso, a larga exploração dos planos fixos focaliza a modulação dos elementos para dar vazão à temporalidade, evidenciando o escoamento indelével dos encontros. Por essas e outras, a conjunção fílmica permite entrever uma relação baseada em correspondências, onde importa vivenciar o ritual da espera de olhos e ouvidos bem abertos.
De um grande escritor brasileiro do escalão de Verissimo, esperamos intensidades geralmente reservadas ao contato literário cujo conteúdo alimenta o espírito. Contudo, o porto-alegrense não disfarça a timidez, ainda que incapaz de interromper as filmagens — em determinado segmento se declara compelido a dizer "sim" para muitas situações, mesmo se sentindo desconfortável. Entrementes, apesar da dificuldade em erigir, à primeira vista, um documentário de uma pessoa retraída e de poucas palavras, Defanti reconhece nesses traços a potencialidade de aguçar a curiosidade pela vida de uma voz que tingiu muitos escritos, mas curiosamente emudece frente aos outros, até mesmo entre familiares. Paciente e introspectivo, o filme adota os traços do autor para desenvolver as abordagens, basta averiguar a ausência do diretor ou momentos em que a palavra é direcionada à câmera sem a obtenção de respostas. Entre a monotonia e a repetição, a tonalidade encontrada desabrocha em sentidos, permitindo uma fusão entre o personagem observado e a câmera.
Se devidamente torcida, qualquer vida pode ser analisada como uma personificação de experiências e circunstâncias históricas. Nem o próprio Verissimo pôde deixar de ver sua vida como exemplar, extraindo algo didático — embora esclareça não ter sido sua primeira escolha se tornar escritor — da infância envolta por livros e pela sombra do pai, Erico. A introspecção, apesar de dominante, cede a certos momentos dialógicos, especialmente quando se encontra diante de uma grande plateia, afortunada o bastante para reconhecer a ilustre presença. Defanti não idealiza o personagem que coloca diante da câmera, tampouco o constrange em busca de respostas documentais rotineiras; ao contrário, integra-o à experiência comunitária formada pela relação intrínseca entre o vital e a trivialidade.
Tomando como referência os temas do autor gaúcho, a morte sempre pairou sobre os escritos, seja os que possuem uma veia cômica ou aqueles mais sérios. O que ancora a consciência fílmica é a instrução das dinâmicas em torno da temática, tanto ao restringir a temporalidade a quinze dias antecedentes ao aniversário quanto exibir o personagem lidando com uma gama de personalidades em diferentes estágios da vida. Há uma celebração, sem dúvida, mas também a presença do artista que observa na qualidade de criador. Uma vez que o tempo é o gerador das atividades mentais no cinema, Verissimo sucede na apreensão de momentos fugidios, conferindo um impulso cinético aos registros devidamente planificados e cronometrados. Trata-se, invariavelmente, de uma evolução criadora aliada à montagem, delineando repetições e variações mínimas. No fim, o testemunho cinematográfico reproduzido situa o espectador em um delicado índice do caráter presentificado da vida, que passa diante dos olhos sem a possibilidade de retorno, caminhando em direção ao fim.
Diferentemente do leitor de ficção em geral, o cinema exige do espectador atenção às evidências cuidadosamente engendradas sem o auxílio da palavra. Felizmente, o filme de Defanti corresponde a essa lógica, mesmo possuindo como objeto de observação um escritor, que poderia tornar a experiência verborrágica ou demasiadamente intelectual. Ao contrário, a fita se dispõe a entregar as formalidades aos encontros, muitas vezes descontraídos. Assim como o já octogenário Verissimo, visto jogando paciência nos minutos finais, o filme não busca grandes efeitos e movimentos elaborados, mas uma aproximação calorosa ao que há de mais sincero, uma trajetória calcada nas distrações que, por sua vez, irrompem a sublimação cotidiana mesmo tão perto do fim.
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