Escrevendo sobre amor-próprio, Joan Didion fala sobre respeitar a si mesmo, entender que a vida é arriscada e que, portanto, para viver, o sujeito precisa estar antes de mais nada disposto a errar e a saber transformar seus erros em coragem. Didion fala sobre amor-próprio como ter consciência de que tudo na vida tem um preço e estar disposto a pagar.
Faz-tudo de um prédio em Nova Iorque, Ollie (Billy Griffith), personagem do filme Um homem diferente (2024, dir. Aaron Schimberg), também fala de amor-próprio quando afirma que “toda infelicidade na vida vem de não aceitar o que é”. A vaga frase de Ollie é dirigida a Edward Lemuel (interpretado por um Sebastian Stan cada vez mais destemido), um aspirante a ator de trinta e poucos anos acometido por neurofibromatose tipo 1, distúrbio que faz crescer tumores subcutâneos que levaram a desfiguração de seu rosto.
Para além de sua aparência, a doença marca Edward como um adulto aflito e nervoso que carrega a resignação de uma vida sob o flagelo constante do olhar alheio, de um mundo que só parece enxergar o que presume monstruoso em seu exterior, desconsiderando todo o resto. A vida cautelosa de Edward é passiva e inexpressiva, toda uma tentativa de passar despercebido.
Preso em sua doença, Edward embarca em um experimento médico radical que promete, em sua cura, a transformação de um homem feito inseguro pelo medo dos outros em uma versão desinibida e bem ajustada de si mesmo.
Curado, Edward se vê tão distante do que já foi ao ponto de assassinar o passado criando uma nova identidade, assumindo o nome de Guy. Tão genérica como o nome que criou para si, a nova vida de Edward parece uma simulação, um amalgamado de situações que acontecem com ele mais do que ele as faz acontecer; antes carregada pela correnteza, agora sua vida é guiada por uma marola não menos avassaladora. Livre da doença que por tantos anos o comprimiu, Edward ainda vive preso.
Entrecortada à transformação, o filme nos apresenta à Ingrid (Renate Reinsve), a vizinha incauta e extravagante que nutre uma fascinação curiosa por Edward. Tomando-o como um conceito, Ingrid faz de Edward um personagem na peça que escreve, também ela apagando sua existência e assumindo a autoria de sua vida, sua peça inicialmente refletindo tudo o que Ingrid leu em seu vizinho, do seu jeito ansioso e retraído à vitimização a que ele próprio se assinalava.
Enquadramentos acachapantes e cenários empanturrados criam o ambiente esmagador ao redor de Um homem diferente. Sua trilha sonora e a edição ultra consciente do tempo rítmico seguram uma atmosfera ao mesmo tempo cômica e sinistra, dando ao filme um tom meio noir, meio expressionista. Os primeiros acordes do tema principal escrito por Umberto Smerilli indiciam algo de dissonante e ameaçador, colocando imediatamente a audiência em alerta, à espreita de algo medonho. O que há de medonho, no entanto, passa longe de ser a aparência de Edward, mas a gradual compreensão de que sua vida acossada se deve muito mais a ele mesmo do que ao mal que lhe afligia.
Para a audiência, a consciência de que a profunda solidão de Edward é em alguma medida autoinfligida começa a tomar forma com a entrada em cena de Oswald (Adam Pearson, excelente no papel), o homem simpático que surge para abalar a frágil confiança do protagonista. Escrito para roubar a cena e reluzindo um charme magnético, Oswald não se encolhe na doença que compartilha com Edward, mas, ao contrário, parece se expandir em qualquer recinto que adentre.
Enquadrado sob o olhar verminoso de Edward, Oswald parece um tanto suspeito, ligeiramente artificial, erguendo uma atmosfera de instabilidade que parece prenunciar o momento em que sua máscara de desenvoltura e assertividade cairá para revelar um sujeito tão frágil e infeliz quanto o próprio Edward. A grande reviravolta do roteiro inteligente de Aaron Schimberg é a sinceridade de Oswald e das relações que ele constrói.
A entrada de Oswald ilumina a periferia em que Edward esconde sua vida, a viela em que ele escolheu se encolher da vista do mundo por não conseguir se respeitar. A inveja que ele deposita sobre Oswald reflete ainda sua arrogância incrédula de que alguém que acometido por uma doença tão alienante possa ser aceito verdadeiramente e com aparente facilidade.
O sucesso de Oswald em tudo o que Edward fracassa não é fruto do acaso ou de uma aptidão inata para a vida; pelo contrário, é um hábito cultivado a duras penas. Para Didion, o amor-próprio é uma disciplina, um pacto renovado diariamente e, faça chuva ou sol, Oswald paga o preço do medo dos outros para viver genuinamente.
Oswald encara a circunstância de sua doença sem qualquer hipocrisia, reconhecendo-se diferente sem que isso lhe retire a dignidade e o profundo respeito que ele sente por si mesmo. É o amor-próprio de Oswald que o impele ao risco de viver, abrindo-se à ser visto pelo olhar do outro, aceitando-se nesse lugar de fragilidade que o permite ser conhecido e, assim, conhecer as pessoas ao seu redor.
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