Antes de tudo, é comum que utopias ou fábulas cinematográficas sejam criadas para refletir aspectos do nosso cotidiano. No entanto, quando esse mundo é capturado por uma câmera, ele ganha um novo significado, tanto para os personagens quanto para o espectador, que percebem paralelos quando aquelas situações são expostas em imagens em movimento, tornando aqueles conflitos mais potentes, mesmo sem uma câmera gritante. Em Plano 75, dirigido por Chie Hayakawa, a câmera adota uma distância para explorar a melancolia por trás dos personagens, que escolhem o silêncio para expressar suas dores. No primeiro ato do filme, parte mais introdutória, é evidente como é esse mundo, onde o governo oferece um programa para que os idosos com até setenta e cinco anos podem tirar suas próprias vidas de uma maneira serena. A protagonista, com setenta e sete anos, enfrenta um dilema que aparenta óbvio diante daquele contexto, a opção mais razoável seria aceitar o Plano 75. Ao ser dispensada do seu emprego, ela ocupa um espaço inútil dentro daquela sociedade, ela é idosa, sem famílias ou amigos próximos, porém, ela não pode demostrar fraqueza, por isso somos levados para seu silêncio e pelos seus olhares desassistidos.
Por meio de cenários semelhantes, Plano 75 e Dias Perfeitos, dirigido por Wim Wenders, são obras onde a câmera explora aspectos observacionais, mas se diferenciam ao retratar seus personagens e universos. Enquanto há um ar de otimismo em torno do protagonista idoso de Dias Perfeitos, que encontra encanto no cotidiano através de seu trabalho e sua câmera fotográfica, nos personagens de “Plano 75", incluindo a protagonista, transparecem os aspectos mais pessimistas e melancólicos do Japão. Até mesmo os rostos mais jovens, que ocupam cargos de privilégio naquela sociedade, dialogam sobre esse possível falecimento que se encontra próximo. Hoje, o governo trabalha com setenta e cinco anos, porém, até quando somos úteis para aquele sistema, quando surgirá uma câmera fotográfica semelhante a de Dias Perfeitos. Os sons de risos são ecoados por um sentimento de superioridade, onde enquanto permanecerem jovens, eles continuam acima das mãos que construíram aquele espaço.
Na maioria dos planos de Plano 75, quando Michi Kakutani, interpretado por Chieko Baishô, está capturando a imagem, transmite-se uma sensação existencialista marcante. Ao contrário de suas colegas de trabalho, Michi não tem ninguém próximo quando chega em casa. Enquanto algumas colegas conseguem empregos como babás através de seus filhos, Michi precisa procurar um novo emprego para pagar suas contas. Ela se torna uma observadora, assim como a câmera, e por não ter o direito de reclamar — afinal, existe um sistema para “acolhê-la” — tudo que ela pode fazer é participar desse cotidiano através de seus passos e seu silêncio angustiante. Não há motivos convincentes para Michi querer continuar viva, e a narrativa evita retratá-la como uma vítima, o que é interessante porque não se cai no clichê do “sofrimento”, algo que a diretora claramente evita.
A narrativa da obra inicialmente cativa o espectador, porém à medida que avança, parece cair em uma repetição visual. Apesar dos diversos eventos e dos diferentes núcleos de personagens, tenho dificuldade em me envolver completamente com a profundidade dessa história, apesar da montagem estimulante e das composições que fazem paralelos com a sociedade contemporânea. Os rostos dos personagens não refletem dor ou sofrimento de forma evidente, evitando o exagero, mas a condução das imagens que buscam transmitir essa mensagem enfraquece o impacto do longa-metragem. Quem sabe, a obra estivesse menos agarrada ao seu universo poderia perceber um conteúdo bem mais interessante. Temos exemplos interessantes, como a série de TV, Atlanta, onde por mais que seja originado uma história a partir de uma fábula, existem acontecimentos que movem a narrativa, sendo uma câmera mais ativa ou neutra no espaço utópico.
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