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Uma análise da cena de amor em "Vertigo"



É difícil descrever como uma cena consegue mexer conosco de alguma forma. Nunca vou esquecer da caminhada com a vela em Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky - a razão pela qual a Revista tem esse nome -, do barco se afastando da ilha de Manhattan em Notícias de Casa (1977), de Chantal Akerman ou, ainda, Véronique cantando em A Dupla Vida de Véronique (1992) de Krzysztof Kieslowski. O mesmo posso dizer do que chamo de a “Cena de Amor” em Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock. Não importa quantas vezes eu reveja o filme, sempre irei me emocionar como se estivesse vendo-a pela primeira vez. A sensação que tenho, quando ouço os acordes de Bernard Herrmann para a cena, é que me tornei o próprio personagem de James Stewart e estou diante de algo inexplicável, que me encanta e me assusta simultaneamente, mas de onde não consigo tirar o olho. Nos próximos parágrafos, vou tentar explicar o porquê.


I

O espectador está no interior do quarto de Judy (Kim Novak) no Hotel Empire. A colcha sobre a cama e alguns pequenos quadros pendurados na parede possuem um arranjo de flores, numa alusão à pintura de Carlotta Valdés. Scottie (Stewart) aguarda Judy. O ex-inspetor de polícia caminha até a janela, e há o primeiro corte da cena para um close-up do personagem: Judy chegou. Hitchcock opta por não filmar a visão que o protagonista tem da janela, deixando o suspense ser construído para que o impacto posterior seja mais forte. Scottie sai da janela e vai até à porta. A moça surge no final do corredor, vestida no tailler cinza, de cabelos loiros, mas sem o coque amarrado atrás. A personagem surge um pouco sombreada enquanto avança em direção a ele, sendo iluminada por uma das luzes superiores do cenário. Judy, parcialmente Madeleine, entra no quarto sob o olhar de Scottie, que fecha a porta.



Scottie diz que o cabelo deveria estar preso num coque. Judy diz que foi tentado, mas que parecia não combinar com ela. Essa foi a forma que encontrou de permanecer um pouco como ela mesma em meio à presença do fantasma de Madeleine em seu corpo. Scottie, atrás dela, leva sua mão até os fios de cabelo que deveriam estar presos. Judy vira-se para encará-lo e o breve tempo do olhar é a resposta: ela vai fazer o que ele pediu. Encaminha-se até o banheiro, e a porta iluminada pela cor do neon verde do letreiro se fecha com Judy lá dentro. Scottie está, mais uma vez, aguardando. A partitura de Herrmann, através dos violinos cujas cordas parecem estremecer, dá o tom de suspense para o grande momento. O compositor traz um pouco da musicalidade espanhola, mas também, por se tratar de um romance trágico, incorpora elementos de Richard Wagner, principalmente de Tristan und Isolde.


II

Scottie senta-se na poltrona enquanto espera Judy. Ele está de costas para a câmera e, consequentemente, para a porta do banheiro – até que se ouve, fora do quadro, o som de suas dobradiças. Os olhos espectatoriais, assim como os de Scottie, voltam sua atenção para o que surgirá no plano seguinte. O detetive levanta-se da poltrona e vira seu corpo em direção àquele som. Hitchcock, através do zoom, passa do plano médio para um close-up. O rosto de James Stewart reage, perplexo, diante do que ele acaba de ver. Deparamo-nos com a porta do banheiro aberta e Judy, agora completamente Madeleine, diante dele. A imagem fantasmagórica da falecida é intensificada pelo uso do filtro de névoa de forma bastante densa. O verde que dava nome às sequóias milenares (Sequoia sempervirens), aquelas que estariam sempre vivas, ganha ainda mais significado nessa volta do mundo dos mortos. Ela tornou-se a Eurídice que Boileau e Narcejac escreveram em D’entre les morts. Na produção literária que inspirou o filme, Flavières (personagem que tornou-se o Scottie de Stewart) chamava Madeleine de Eurídice, em referência à mitologia grega. Eles descrevem:

Não ousaria chamá-la de Madeleine, por causa de Gévigne. Além disso, Madeleine era a mulher casada, a mulher do outro. Eurídice, ao contrário, pertencia-lhe inteiramente; ela a tinha segurado nos braços, encharcada, de olhos fechados, com a sombra da morte nas covas do rosto. [...] Para Eurídice ressuscitada [...]. (BOILEAU; NARCEJAC, p. 60)

O aspecto etéreo do vislumbre de Madeleine é ressaltado, ainda, pela supressão de qualquer som externo e o foco na trilha de Herrmann, criando uma sensação de que ambos não estão mais presentes no mundo palpável, mas sim em um mundo que Scottie construiu para si e para aquele fantasma que ele tanto quis trazer de volta à vida. Judy/Madeleine caminha na direção do protagonista. Hitchcock opta por permanecer com o close-up em James Stewart, evidenciando sua admiração pelo que atingiu — ele, tal qual o Pigmalião mitológico; ela, sua Galatéia, a criação que ganhou vida. Ao fazer a personagem de Kim Novak caminhar em direção à câmera, o cineasta inglês faz com que observemos a completa transformação de Judy em Madeleine. Scottie dá um passo à frente e um corte enquadra os dois em close-up. Antes de beijar sua amada, ele põe a mão no rosto dela, quase como se quisesse sentir que tudo aquilo que observa diante de si é real. E então o beijo acontece.



Scottie abraça e beija Madeleine com intensidade, enquanto a câmera faz um movimento rotatório, que Chris Marker chamou de “o mais mágico movimento de câmera da história do cinema”, através do qual se revela, atrás de Scottie e Madeleine, o set da Missão Dolores, onde o ex-inspetor beijou Madeleine pela última vez. Esse movimento potencializa a ideia de morte e ressurreição, ao fazer Scottie deixar de beijar Madeleine e observar o cenário à sua volta, como num delírio, lembrando da morte da amada e, principalmente, da ideia de que ela pode desvanecer a qualquer momento. Mas, naquele instante, ele a tem de volta, ao conseguir fazer de Judy a imagem e semelhança de Madeleine. Já com a janela banhada pela luz verde neon ao fundo, Scottie abraça a moça. Lentamente, o corpo de Judy/Madeleine vai inclinando para trás, enquanto Scottie a beija. Os olhos fechados da mulher, a alvura de sua pele e a intensa luz esverdeada ao fundo dão a impressão de que Scottie, na verdade, está segurando o corpo de uma pessoa morta. A “cena de amor” descrita nesses parágrafos é, na verdade, uma representação da pulsão entre amor e morte, um dos temas recorrentes das narrativas hitchcockianas.


III

Na introdução de Hitchcock/Truffaut, François Truffaut escreve que, para Louis-Ferdinand Céline, os homens estavam divididos em duas categorias: os exibicionistas e os voyeurs. Alfred Hitchcock, continua ele, se encaixava na segunda categoria pois “não se mistura à vida, olha-a” (TRUFFAUT, p. 31). É o olhar de Hitchcock que está afinado em cada plano, em cada componente de cena, do mais amplo ao menor detalhe, ele é o que François Truffaut chamaria de autor. Se havia diretores que chegavam ao estúdio, gravavam as cenas do dia quantas vezes fossem necessárias e iam embora, Hitchcock era diferente. Dentro de seus filmes, tinha um pouco dele – seja na temática que mais perpassou suas narrativas, um homem acusado de um crime que não cometeu, um real medo do realizador ou na relação entre sexo e morte. Para reconhecer um filme dirigido por Hitchcock não é necessário muito tempo, pois sua marca autoral está impressa em cada plano, da forma que um personagem olha para outro a como age diante da câmera. 



De forma única, Hitchcock sabia como construir o suspense – ele defende que 15 minutos de suspense são melhores que 15 segundos de surpresa –, e em Vertigo isso permanece. Se, no livro de Boileau e Narcejac, todo o mistério é desvendado nas páginas finais, o cineasta inglês traz o acontecido para o meio da narrativa fílmica, deixando o espectador aguardar a reação de Scottie ao descobrir o que realmente aconteceu, transformando toda a atmosfera do projeto dali em diante. O longa-metragem se encerra como aquele que carrega todas as obsessões de Hitchcock, sendo considerado um dos maiores filmes já realizados e, também, um dos que mais entrega material para estudos cinematográficos e psicológicos. É possível, ainda, perceber as influências de Vertigo em filmes posteriores dirigidos por diretores distantes do modelo clássico hollywoodiano, como Chris Marker (La Jetée, 1962) e Chantal Akerman (La Captive, 2000).


 

Referências Bibliográficas


BOILEAU, Pierre; NARCEJAC, Thomas. Vertigo. Tradução de Fernando Scheibe. São Paulo: Vestígio, 2016.

MARKER, Chris. A free replay. Disponível em: https://chrismarker.org/chris-marker/a-free-replay-notes-on-vertigo/. Acesso em: 31 mar. 2022.

TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.



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