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Foto do escritorGabriel Lucas

Um épico em construção: as múltiplas dimensões de “Duna”


“É no início que se deve tomar, com máxima delicadeza,

o cuidado de dar às coisas sua devida proporção”

— Princesa Irulan em Duna, romance escrito por Frank Herbert


Sabemos, com efeito, que através da experiência do cinema podemos ser conduzidos a infinitos tempos e espaços, diferentes épocas e mundos. Ao adquirir o papel de explorador, o espectador vai ao encontro de novas culturas, novas maneiras de pensar e novos lugares de dizer. Esse movimento de translação, comumente associado aos diferentes gêneros fílmicos — a aventura, a fantasia, etc. — aqui será catalisado pela ficção científica com Duna (2021), longa-metragem dirigido e produzido por Denis Villeneuve, adaptação direta do romance homônimo escrito por Frank Herbert. Ambas as obras buscam narrar o percurso de Paul Atreides, herdeiro de sua dinastia, após a missão incumbida à família de deixar seu planeta natal, Caladan, e governar o planeta desértico Arrakis. É partindo dessa transição que surgem os eventos letais e catastróficos que vão mover todo o Imperium, mas sobretudo o feudo de Arrakis e as dinastias das Casas Maiores — as famílias reais pertencentes às castas mais altas da sociedade interespacial. A promessa desse épico — a batalha entre o bem e o mal, a peregrinação do herói e o atravessar pelas catástrofes —, entretanto, é segmentada em duas partes, dois filmes distintos. Nesta primeira parte, é perceptível a densidade e a delicadeza da construção de um mundo — seja o mundo ficcional ou os vários mundos do universo do longa — em suas mais diversas faces, a exemplo da religião e da ecologia. Tais elementos, como veremos a seguir, culminam em um projeto de épico por Villeneuve, e preparam o palco para a ação e o iminente derramar de sangue no desfecho da segunda parte.


I

Numa das primeiras cenas do longa, após despertar de um de seus sonhos — ou visões —, Paul saboreia a refeição matinal com Jessica, sua mãe. Em um ato rápido, mas pouco sutil, vislumbramos o poder de Paul em usar a “voz”, recurso sobrenatural de persuasão psíquica e física do outro a partir da fala, para comandar sua mãe a oferecer-lhe um copo de água. Em cena posterior, conhecemos melhor sobre esse poder e sobre as visões de Paul, quando a reverenda madre das irmãs Bene Gesserit testa a capacidade de sua mente, de seu corpo e de seu poder interior. É aqui, nos trâmites da mise-èn-scene, que entrevemos o real propósito e a constituição concreta dessa irmandade. Desde os primórdios do Imperium, as irmãs Bene Gesserit vêm articulando planos e estratégias para culminar no surgimento do “escolhido”, aquele cuja mente e poder poderão transcender o espaço e o tempo como o conhecemos. Em Arrakis, essa mesma promessa do “escolhido” é metamorfoseada na figura do “Kwisatz Haderach”, termo adaptado do hebraico e que significa “o encurtador do caminho”. Assim, através das areias e das cores intensas arrakinas, do breve contato que temos com esse povo antes e depois da grande batalha no longa, somos dissuadidos pela mise-èn-scene a acreditar nessa profecia e na chegada do profeta, aquele que guiará o povo fremen ao paraíso — possível relação com a própria história hebraica. Sob esses elementos, percebemos o esforço de Villeneuve em construir, apesar de apressadamente em determinados momentos, as diversas faces religiosas, para os fremen, as Bene Gesserit ou os descrentes do Imperium e a sua potência para a posterior metamorfose épica de Paul Atreides em Paul Muad’Dib.



II

No vasto deserto de Arrakis, esse plano religioso da trama divide o espaço com um outro plano, onde os personagens são conduzidos pela potência política dos eventos nos quais estão inseridos. A princípio, o planeta desértico é a única fonte do Imperium para conseguir a especiaria — uma substância alucinógena que pertence aos ritos fremen e, de alguma maneira, transforma o seus corpos e mente. Essa substância é também o único recurso utilizado para garantir o uso da viagem espacial, o que provoca toda a atenção ao planeta e aos fremen, seu povo originário. Esse discurso, logicamente mais esmiuçado e explorado na obra literária, metamorfoseia-se à sua maneira singular. A imagem não nos apresenta, de fato, a riqueza do que seria Arrakis caso os projetos aquíferos do planeta tivessem sucedido, os quais garantiriam a circulação da água e da proficuidade de uma vegetação rica. Ao invés disso, nos provoca com a sua ausência: o deserto e a sua cor amarelada; a aparição das estações ecológicas e um breve vislumbre da vegetação resguardada neste espaço.



Há de se destacar, entretanto, que essa ausência também pode afetar, de uma forma relativamente negativa, a expressão da mise-en-scène. Assim, apesar de apresentar uma certa resistência no uso do aparato fílmico — a cinematografia, a direção de arte, a trilha sonora, etc. — para apresentar parte de todas essas dimensões e dar espaço ou palco para o desenrolar do épico, o seu foco primário, Villeneuve não abandona de todo esses múltiplos planos e dimensões. Ainda assim, as recorta sucessivamente, estabelece suas modificações e constrói em Duna um novo sujeito, o qual, mesmo que narrativamente e diretamente ligado à obra literária, possui um propósito autêntico e único. De fato, o cinema circunscreve o lugar dessas escolhas para instaurar um novo sujeito e, assim, inscrever toda a sua produção como novos autores dessa narrativa.



O filme é finalizado e cortado com uma suspensão e uma promessa. Após a invocação da lei de Amtal — um embate para garantir a liderança de um determinado grupo fremen e que acaba apenas com a morte de um dos lutadores —, os fremen caminham, a passos fortes e como num cortejo fúnebre em direção a um de seus abrigos. O povo da areia, ou o “poder do deserto”, caminha em direção ao seu futuro e à esperança. Ao vislumbrarem o verme da areia, enxergam também uma fração da potência do povo de Arrakis, de suas comunidades e do próprio Shai Hulud, a divindade suprema de Arrakis. Na sacralidade fremen, Shai Hulud seria a incorporação de uma entidade divina, força geradora do universo e que o governa. Ao dialogar com o plano religioso — cuja relação pode ser estabelecida entre muitas tradições religiosas —, também somos apresentados a uma profecia, ou seja, a promessa de um messias. O Kwisatz Haderach, a voz do mundo exterior, conduzirá a população fremen ao “paraíso”, à sua própria terra prometida.  Com isso, é desses elementos e de muitos outros que são esboçados e orquestrados pela condução de Dennis Villeneuve em Duna, que parte a construção do épico, e portanto a preparação para o desenlace e o desfecho das histórias aqui primordialmente entrelaçadas.

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1 Comment


Eloi Lima
Eloi Lima
Feb 28, 2024

Belo texto.

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