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Foto do escritorLwidge de Oliveira

Um problema sobretudo do olhar: Comentário sobre "Mandingo" (1975)


Prestes a ser enforcado por ter realizado um motim na fazenda vizinha, um escravizado brada contra seus malfeitores que a organização a qual construíram suas vidas esvaziam o sujeito, desumanizam os corpos e invalidam as vontades. Particularmente, direciona o olhar para outro negro, que auxiliou em sua captura, julgando sua conduta em prol de senhores insensíveis à vida do povo a que pertence. O negro em questão se trata de Mede (Ken Norton), referido na maior parte do tempo como Mandingo, termo que dá nome ao filme. Porém, apesar de carregar consigo tal responsabilidade narrativa, a obra se assemelha à abordagem de Johnny Guitar (1954, dir. Nicholas Ray), investida em outros direcionamentos. Como o aclamado western, mais do que se concentrar na perspectiva inferida, importa evidenciar uma estrutura social, esboçando uma particular reflexão acerca da organização econômica, racial e histórica de um país que se diz fundado sob os princípios democráticos.


Dirigido por Richard Fleischer, o filme está localizado entre dois períodos-chave do movimento da Nova Hollywood: a leva de filmes integrados ao American Art Film e os blockbusters surgidos a partir de 1975, que, enfim, estabeleceram os ditames das produções hollywoodianas até os dias atuais, recebendo a alcunha de high concept [1]. Entretanto, mais do que ser fruto de uma época marcada pela drástica mudança da maior indústria cinematográfica até então, o filme corresponde a uma perspectiva formal modernista, onde "a obra de arte era obrigada a reconhecer os materiais e as estruturas do seu meio" [2].


Produtor de retratos sociais, os Estados Unidos são detentores de uma posição impositiva de costumes através da indústria cinematográfica. Foi através do próprio western que toda uma idealização fora construída acima dos valores individualistas e segregadores, da mesma maneira o melodrama norte-americano impunha socializações avessas à realidade do público, envolto por fantasias sociais que raramente teriam a oportunidade de vivenciar. Por outro lado, o filme de Fleischer adota uma consciência metalinguística sintomática de base estruturalista, presidindo uma inclinação do meio pela autoconsciência dos termos e procedimentos [3]. Nesse sentido, o realizador está ciente dos processos constituintes, e os incorpora à forma ao categorizar o legado deixado pela escravidão, fragmentando o caráter romântico herdado de filmes como E o vento levou… (1939, dir. Victor Fleming) e desestabilizando o díptico embate entre mocinhos e bandidos até então retratado nas telonas, visto que a dor e a miséria desempenhadas pelo próprio sistema instaura a culpa e destrói os alicerces morais.



Desde o período colonial, a conquista sobre a terra refletiu todas as oscilações do gosto, de todas as ideias patrióticas nos Estados Unidos. O espaço como terreno sagrado, anteriormente profanado por culturas consideradas inferiores, seria alvo de grandes missões dispostas a domesticar, de tornar mais brando e, por fim, habitável. Trata-se de um processo incutido, construído como verdade a ser incorporada na socialização, que, por sua vez, deve ser somada a um mundo colonizado, dividido em compartimentos [4]. De tal processo, a escravidão encontrou formas de se perpertuar por mais de 200 anos no país. Adotando como perspectiva essas oscilações, o filme de Fleischer se encontra também em um período narrativo conturbado, cindido, na iminência do estopim da Guerra de Secessão. Acompanhamos a narrativa sob a perspectiva de Warren (James Mason) e Hammond Maxwell (Perry King), pai e filho respectivamente, escravocratas sulistas. O primeiro deseja um herdeiro para perpetuar o domínio geracional na região; o segundo se envolve desmedida e impulsivamente com as escravizadas da fazenda. Obviamente, a desavença gera todos os infortúnios a serem apresentados. Tudo gira em torno dessas vontades contrárias: o pai exigindo algo do filho, e este, em contrapartida, procurando modos de contestar as vontades daquele – mas, ainda assim, realizando a manutenção escravista.


As circunstâncias em que se encontram os dilemas também são comunicadas para além dos diálogos. De acordo com Bordwell e Thompson, a forma fílmica é um conjunto unificado de elementos interdependentes relacionados, havendo princípios que ajudam a criar as relações entre as partes [5]. Por exemplo, o filme opta pela ausência de luz ou incidência direcionada, beirando o chiaroscuro, o que resulta no difícil discernimento de certas cenas. Do mesmo modo, a direção de arte exprime um mundo sulista desromantizado, onde as casas suntuosas estão caindo aos pedaços e o seio familiar desestruturado. Unindo as duas expressividades, comunica-se um mundo em decadência, prestes a eclodir, um mundo que encobre seus atos. As personagens vagueiam pelo quadro procurando formas de sanar os sentimentos de infortúnio e solidão, mas são rapidamente tragadas para uma espiral de intrigas, discordâncias e contradições. A dicotomia, expressa pelas relações entre brancos e negros, é ressaltada por essas medidas, reforçando o caráter dialógico sem necessariamente recorrer à palavra. Afinal, trata-se de pessoas que praticam sobretudo o mal, livres de qualquer oportunidade de salvação. Não é à toa que os verdadeiramente lúcidos são os escravizados, que em poucas cenas expressam o desejo pela liberdade e saberes ancestrais, personagens geralmente referidos como desvirtuados, insensíveis e sem alma pelos brancos.



A respeito da negritude, Frantz Fanon a descreve como uma maldição corporal acometida pela imediaticidade do encontro visual [6]. Todavia, a construção visual racista não pode apenas ser vista como técnica de dominação, uma vez que se trata de um complexo nó a unir tanto o sujeito quanto o objeto do racismo; isto é, unindo sentimentos opostos, como o desejo e o ódio [7]. Na fita, temos um invariável discurso hipócrita de olhar para o corpo negro inerente aos sentimentos citados, seja por situações externas à narrativa principal — a cena em que Mede é assediado por uma viúva alemã no momento de sua vendição —, seja pela interação de Hammond com as escravizadas da fazenda, alternando entre docilidade e possessão. A obra trabalha o corpo negro sob a perspectiva do opressor, exprimindo como essa maldição corporal é acometida sobretudo através do olhar. O resultado é amargo, pois mais do que expor as agruras da escravidão sob uma abordagem de embate interracial, o filme evidencia como esse olhar é direcionado, como os sentimentos afluem a partir da atenção direcionada a Mandingo e outros escravizados, exprimindo mormente o problema como algo construído historicamente de maneira perversa e irreversível.  


Sem dúvida audacioso, o projeto de Fleischer condensa uma dimensão histórica nutrida pela trivialidade do mal e reflete sobre as consequências expressas a longo prazo na sociedade. Assim como em outros filmes, a obsessão pela reflexão acerca da abjeção de uma forma de relativismo moral assombra essa pequena obra-prima setentista. Essas dimensões conceitual e moral coincidentemente cumprem os requisitos espetaculares de Hollywood, ao mesmo tempo que os questionam, fazendo deste cineasta ainda subestimado um dedicado artesão, capaz de discutir a própria tradição cinematográfica norte-americana em uma espécie de descentralização furtiva.


 

Referências Bibliográficas


[1] MASCARELLO, Fernando. Cinema hollywoodiano contemporâneo. In: ____. (org.). História do cinema mundial. 5. ed. Campinas: Papirus, 2009. p. 336

[2] BORDWELL, David. Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. p. 126

[3] STAM, Robert. O advento do estruturalismo. In: ____. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2003. p. 124

[4] FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968. p. 127

[5] BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: uma introdução. São Paulo: Editora da USP; Campinas: Editora da UNICAMP, 2013. p. 127

[6] FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu editora, 2020. p. 126

[7] MITCHELL, W.J.T. O que as imagens realmente querem?. In: ALLOA, Emmanuel. (org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2015. p. 172

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