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Um Cardume se Aproxima: Entrevista com Luiz Fábio Torres

Atualizado: há 20 horas

Foto: Alex Toffoli
Foto: Alex Toffoli

Em 2019, a Cardume surgiu como uma plataforma de streaming dedicada exclusivamente a curtas-metragens brasileiros, fundada pelos atores Luciana Damasceno e Daniel Jaber. Nos quase seis anos de sua existência, a empresa expandiu suas operações, realizando editais de incentivo, mostras de cinema em aviões e, mais recentemente, inaugurando uma sala de exibição gratuita dentro de uma rodoviária em Belo Horizonte. Para entender melhor essa trajetória, a Nostalgia conversou com Luiz Fábio Torres, sócio e diretor da Cardume ( e também ator) sobre as origens do projeto, suas ambições futuras e as marés que os afetam.


Felipe Duarte: Eu queria começar, na verdade, um pouquinho antes do começo. Porque você é sócio em uma empresa de distribuição, trabalha com streaming de curtas-metragens, mas você é, antes de tudo, um ator que atua nesse universo. E isso já é uma experiência bastante específica. Minha primeira pergunta vai justamente nesse sentido: tenho a impressão de que a sua entrada no campo do trabalho cultural se dá como ator, dentro do ramo da atuação, que inclusive me parece mais associado à linguagem do teatro do que, especificamente, à do cinema. Então, como acontece, para você, essa aproximação com o audiovisual?


Luiz Fábio Torres: Eu acho que é isso. Comecei a estudar teatro com nove anos. E o teatro virou essa paixão. Minha formação acadêmica é em Teatro e Artes Cênicas. O cinema veio depois. Lembro especificamente da primeira vez que fui ao Festival de Cinema de Tiradentes. Foi ali que pensei: “Quero fazer cinema brasileiro.” Acho que foi nesse momento que eu falei: “Nossa, eu gosto dessas coisas que estou vendo. Eu me identifico com essas histórias. Isso está próximo de algo que me interessa.” Foi esse o start, sabe? Mas acho que tem uma característica interessante nisso tudo, porque a Cardume é criada e gerida por três atores, e a Luciana [Damasceno] e o Daniel [Jaber] são bailarinos. A Cardume é formada no cinema, mas com uma galera que vem da cena. Acho que isso dá um jeito especial de pensar. Um olhar diferente.


Acho que a Academia, e eu percebi isso muito a partir do teatro, é, sim, muito importante, mas ao mesmo tempo ela acaba nos prendendo a uma certa forma de pensar as coisas. Um jeito de pensar a si mesmo, de pensar o teatro. Tanto que eu me sinto, às vezes, quase conservador cenicamente, no teatro. Porque a Academia te forma dentro de uma ideia do que é teatro, do que ele deve ser, né? E como a gente não passou por esse mesmo processo com o cinema, acho que estamos menos presos a um compromisso rígido com o que o cinema "deveria" ser. Menos comprometidos com uma ideia acadêmica do cinema. A gente foi para outro lugar... Tenho até receio de falar bobagem, mas acredito que isso acaba trazendo um certo frescor. Quando eu assisti ao primeiro projeto da Lully e do Dani, no comecinho da Cardume, eles tinham levado uns panfletos para um festival, apresentando como um novo streaming de curtas-metragens, eu achei aquilo muito diferente. Um streaming de curtas! E mais do que isso: esse desprendimento que a Cardume tem... de olhar pra uma rodoviária e pensar “vamos enfiar uma sala aqui, do jeito que der”. Porque isso, pra mim, é muito teatral. E aí eu entro numa coisa que acho que o cinema pensa pouco à maneira do teatro. E, pra mim, isso é uma pena. 


Eu sempre falo: o cinema tem 130 anos, o teatro tem 4 mil. Acho que o cinema devia olhar com mais atenção para o teatro. Os cineastas de quem eu gosto frequentam o teatro. E os atores que eu admiro no cinema fazem teatro. É um lugar de onde dá pra beber muito. Eu sempre gostei de cinema e pensava: "Cara, eu quero trabalhar com isso." E a Cardume também nasce um pouco dessa cabeça de atores e bailarinos e tem uma vontade ali que é muito urgente, muito de ator mesmo: a gente quer trabalhar. A gente quer que mais filmes sejam feitos. O que a gente pode fazer pra que isso aconteça? E a resposta tem sido criar estratégias para que as pessoas assistam aos filmes. E, a partir disso, a gente vai descobrindo um caminho: aproximar o filme das pessoas é o primeiro passo. Porque, no fim das contas, as pessoas gostam de filmes nacionais. As pessoas conhecem filmes nacionais. E quando existe algum incentivo, algum interesse por essas produções, isso pode, um dia, virar mais projetos. E esses projetos geram mais possibilidades para que a gente possa seguir trabalhando.


E esse esforço, né? Porque eu entendo que foi isso: essa cabeça do ator, do produtor, do agente cultural independente, alguém que quer trabalhar. Isso é algo que você aprende no teatro. E essa realidade, você leva pro cinema, movido pela vontade de fazer audiovisual. Estou correto?


É, eu acho que é esse o caminho. Porque antes era só streaming, e as demandas foram fazendo a gente virar outras coisas. Mas era ver os filmes nacionais, ver curta, festival e falar: "Poxa, que pena que eu nunca mais vou poder ver isso." Porque isso vai se perdendo. Mas era um momento em que a gente tinha. Eu lembro de fazer isso: de chegar no diretor e pedir. E aí a gente pensou: vamos criar um lugar onde essas coisas possam estar hospedadas, acessíveis, tenham um espaço de acesso e uma curadoria.


Você não entra formalmente como sócio no momento da fundação da Cardume, mas você já estava aproximado dos meninos quando esse processo estava ocorrendo? Você observou isso acontecer?


Eu observei. Lembro deles tendo a ideia, e eu estava no final da faculdade de Teatro. Quando eles começaram, eu estava me organizando para passar um semestre estudando teatro em Portugal, pela minha faculdade. Então, eu estava em cartaz com uma peça em São Paulo, me organizando para ir para Portugal, passar esse semestre. E logo isso aconteceu. Eu cheguei antes da pandemia. Foi um impulsionador da minha pandemia, porque as pessoas voltaram a atenção para os streamings com muito mais intensidade. E a gente conseguiu fazer parcerias de mostras online. Era um projeto muito legal. Mas nem era uma ideia trabalhar com isso inicialmente, porque eu já estava com uma agenda no teatro muito definida por pelo menos um ano.


Como é que foi esse processo de estruturar a Cardume? Porque uma coisa é você ser esse agente cultural mais independente, que vai buscar fazer esses trabalhos de produção ou de distribuição do seu próprio trabalho, para dar um ciclo de vida àquilo ali. Outra coisa é você montar uma operação a longo prazo, que lida com tecnologia, com essas plataformas. Acho que, no pré-pandemia, a gente também não tinha uma noção muito clara desse tipo de tecnologia existindo no Brasil. Então, como são as movimentações logísticas desse surgimento da empresa Cardume?


O Daniel é o meu sócio e ele é estatístico. Acho que isso é uma informação importante. Ele é formado em estatística, porque vem da área de pesquisa, e começou a fazer pesquisas, assim: qual é o maior gargalo do processo de fazer um filme? E aí ele percebeu que era a distribuição. Produzir um curta e distribuir já era um processo muito cansativo. A galera não sabia como fazer, sabe? Então, depois de um ano de produção de filme, seis meses... é um trabalho que dura dois anos, na maior parte das vezes, sem remuneração. A pessoa fica indo atrás de festival, escrevendo, levando não, indo atrás de planilha de festival, tentando… Então, o fato de ele ser estatístico ajuda muito a gente a entender essas demandas tanto do público quanto dos produtores de cinema. E a parte tecnológica... Essa também é uma parte muito curiosa, e eu acho que aprendi muito com a Luciana e com o Daniel. A gente sempre fez um pouco com o que deu, sabe?


Foi um site que dava para fazer, onde a gente conseguia colocar vídeos e as pessoas podiam pagar com cartão pelo PayPal. Era uma plataforma bem simples, porque era uma empresa muito pequena. A gente começou chamando amigos: "Ah, cara... nem tem como licenciar seu filme, mas você topa? As pessoas vão pagar 5 reais, e eu pago uma porcentagem dessas assinaturas que distribuem pros filmes. Você topa entrar?" Depois foi estruturando. Mas começou assim, bem artesanal. A gente mesmo fazia o site, sem design, com o nosso conhecimento básico de Canva. A gente precisava de um cadastro para o site, então fazia uma coisa azul, colocava e, aos poucos, a coisa foi tomando forma.


A gente começou muito sem patrocínio, sempre foi um investimento próprio. Agora, com os editais, estamos conseguindo patrocínio, inclusive. Acho que tinha um pouco dessa urgência, e isso é uma característica da cultura brasileira. De muitos projetos, de amigos, de gente que faz cinema, teatro, música. A gente quer começar, e é difícil em todo lugar, mas especialmente no Brasil é muito difícil também começar um projeto artístico, ainda mais do zero. A gente não tinha nem estrutura para apresentar um projeto para um edital, sabe? Como apresentar algo que ainda estava muito no início? Hoje, temos cerca de 20 streamings independentes nacionais. Existe até um fórum de streamings independentes, e a Cardume faz parte da diretoria desse fórum. Esse fórum é responsável por abarcar uma produção muito significativa do audiovisual nacional. Eu adoro o nome Cardume porque ele é muito fiel ao que a gente faz. Era uma ideia de unir realizadores e produtores do audiovisual que estavam dispersos. Eles tinham que lidar com grandes produtoras de forma muito individual. Então, a ideia era unir essas pessoas que estavam próximas, e isso foi crescendo.


Hoje em dia vocês se desdobram em vários caminhos. Vocês continuam centralizados no streaming, mas também têm: um blog que, em certa medida, funciona como um espaço de crítica; um campo de formação dentro do site de vocês; e um feed no Instagram que, às vezes, funciona como um espaço para notícias e artigos de opinião. Ou seja, vocês estão atacando por várias frentes. O que você acha que, hoje, dentro de todas as suas operações, é o que gera mais impacto?


Eu acho que essas coisas dependem umas das outras. Acho que tudo o que a Cardume foi se tornando veio a partir de uma observação nossa do mercado e dos realizadores, em que a gente pensou: vamos criar isso então. Por exemplo, a gente criou o streaming. A gente pensou: "Bem, é isso, um site para as pessoas verem filmes." Mas isso não era suficiente. Aí a gente pensou: "Bem, vamos criar um clube de benefícios, em que realizadores entram, têm desconto no acesso, chamamos de parceiro, tem desconto para serviços, para formação de cursos, uma plataforma para realizadores." A gente achou que, mesmo assim, não era suficiente.

Na pandemia, acho que foi quando começou uma virada. Criamos o primeiro edital de produção Cardume, onde juntamos um dinheiro das assinaturas para investir nas produções, em aulas, para fortalecer a comunidade. Usar o dinheiro de quem assiste aos filmes para investir em novas formações e em projetos. Começamos a chamar alguns parceiros que já conheciam a gente, como a Família do Bem, o Domilab, o Hack Color, o Hack Studio, que foram oferecendo serviços para esse prêmio. Assim, conseguimos 40 mil reais em equipamentos de câmera emprestados.


Eles falaram: "Confio na curadoria de vocês, acredito no trabalho, então aqui estão três, quatro diárias desse equipamento de câmera, uma Alexa M1, não sei o que." E, assim, um projeto que inicialmente era de 15 mil reais em dinheiro, junto com esses outros benefícios, virou um edital particular, que não era um edital público, de 115 mil reais, com esses serviços. Nós somos pessoas que já passamos pela história de editais, então sabemos o trauma que isso envolve. Fizemos um edital, realizamos entrevistas com 10 projetos, porque pensamos: "Vamos entrevistar... não é bem uma entrevista, mas queremos entender. No seu projeto, não ficou claro isso, você quer me explicar? Como você está pensando em resolver?" E conversamos bastante com os filmes, discutimos bastante, e definimos o projeto Miçangas, que é um curta.


Aí, em 2023, Miçangas foi o único curta latino-americano na principal competição de curtas da Berlinale. O festival de Berlim recebe 12 mil curtas inscritos e seleciona apenas 20. E o único latino-americano a ser selecionado foi esse do Emanuel Lavor e da Rafaela Camelo, e estreia no final deste mês na Cardume. É um filme, produção Cardume, sabe? Exclusivo da Cardume,. A curadoria para festival é um outro braço. E, então, chegou uma nova parte, que foi quando começamos a fazer curadoria para marcas. Isso começou de forma mais específica quando fomos finalistas de um prêmio do Sebrae Minas, de empresas. Eles gostaram muito do projeto e falaram: "Olha, a gente quer convidar vocês para fazer uma exibição de filmes dentro de uma feira de tecnologia e empreendedorismo."


Ao elaborar o projeto, pensamos: "Vamos levar uma drag queen e um professor de filosofia para fazer um caminho." No final de cada sessão, o professor de filosofia fazia uma conexão entre tecnologia e os filmes. A curadoria foi pensada com esse enfoque. E como o evento tem muitas mesas e uma programação bem intensa, também levamos uma drag queen para chamar as pessoas durante o evento, convidando-as para assistir aos filmes. E foi um sucesso! As pessoas adoraram, e o diretor do Hacktown ficou muito satisfeito. Isso foi no momento em que batemos na porta da Gol e propusemos uma exibição de curtas por quatro meses. Mandamos um e-mail dizendo: "Tudo bem? Temos uma curta-metragem que tem tudo a ver com o voo." Porque, para um voo curto, a pessoa tem tempo de assistir a um curta; para um voo longo, ela não vai se comprometer a assistir a um filme de uma hora e meia, mas pode assistir a dois curtas de 20 minutos e depois dormir. E também foi um resultado muito positivo. Para a Gol, isso foi legal. As pessoas desciam do voo e escreviam para os diretores dos filmes. Isso é muito novo; estamos falando de um público não especializado em cinema nacional.


Nessa jornada da Cardume, o formato do curta move o cinema brasileiro no geral. Mas ainda não há uma formação de um público voltado para o curta. Você percebe uma adesão ao formato na Cardume? Percebe que as pessoas reagem bem a esse formato?


Isso a gente descobriu na prática. O curta é um ótimo espaço para o que a gente chama de formação de público. Mas também há algumas questões sobre esse título, sobre esse nome. Talvez eu goste mais de vê-lo como um produto que aproxima o público. Porque eu acho que as pessoas se dispõem mais a ver um curta do que um longa, caso não gostem de cinema nacional. O compromisso é menor. Muitos desses curtas estão no YouTube sempre muito emocionantes e dramáticos. O curta é um lugar de aproximação com o público. As pessoas topam conhecer o audiovisual por meio do curta. E eu acredito que isso acontece justamente por causa disso: o compromisso é menor. Falar de 15, 20 minutos... E elas acabam gostando. 


Acho que a permanência da Cardume, o cinema da rodoviária, a Mostra na Gol, a curadoria para o Sebrae e outros eventos, é um pouco a prova disso. As pessoas vão, assistem e adoram. Aplaudem, choram, vêm conversar com a gente depois e dizem: "Eu nunca assisti a um curta. Eu não conhecia o curta nacional." E acho que isso pode levar a pessoa a assistir a um longa ou não, mas pode, ao menos, mudar a opinião dela sobre o cinema nacional. Ela diz que não gostava, mas agora tem uma informação nova: ela gostou. E acho que nisso está algo muito potente. E nisso a gente acredita muito, porque é um trabalho de base, de aproximar as pessoas pra cá.


Foto: Cenário Minas/ Anna Laranjeiras
Foto: Cenário Minas/ Anna Laranjeiras

Eu percebo que dentro do projeto vocês têm um carinho enorme pela ideia da rodoviária. É realmente algo muito diferente, é um outro conceito dentro das operações. É uma sala de exibição de curtas-metragens, mas é também uma rodoviária. E aí eu queria entender essa parte específica do projeto. Em que momento ela surge dentro da Cardume? Por que ela surge? Como foi para implementar? Como está sendo manter essa gestão? O pessoal realmente comparece à sala? Como é tudo, de cabo a rabo?


Como a gente fica muito atento, eu brinco dizendo que estamos sempre procurando onde podemos enfiar um curta. A ideia surgiu com o Daniel. Ele estava andando de bicicleta e chegou na rodoviária. A história é bem romântica, muito engraçada. Ele estava de bike, passou pela rodoviária e pensou: "Putz, por que a gente não leva um exibidor para cá?" Ele parou a bicicleta, desceu e conversou com a direção da rodoviária, que nos recebeu muito bem. E, na verdade, o projeto nem existia ainda, porque tivemos que escrever o projeto e aprová-lo na Lei Paulo Gustavo. O projeto é mantido até o final de setembro deste ano, com um ano de exibição, todas as sextas-feiras. 


E aí começou a surgir esse desejo de levar o filme para onde estão as pessoas. É algo muito simples, mas ao mesmo tempo, temos muito carinho por esse projeto, porque ele representa muito do que defendemos na nossa carreira: levar o cinema nacional para os lugares. É quase uma ideia do teatro, sabe, aquele fazer teatro na feira, a commedia dell'arte, quando os atores eram expulsos da corte. É pensar em levar o cinema para onde as pessoas estão. E elas estão na rodoviária. E estão na rodoviária esperando. Elas têm um tempo ali. E a gente descobriu que tem gente que passa muito tempo na rodoviária.


E aí começamos a gestar esse projeto, desenhando como a sala vai funcionar. Então, definimos quais sextas-feiras, quais horários, como serão as exibições. Os curtas são exibidos quatro vezes, uma vez por semana, ao longo de quatro semanas. E tem funcionado bem, e a gente tem muito carinho por isso, justamente porque é fiel ao que acreditamos e porque vemos, na prática, o retorno. As pessoas entram, a entrada é gratuita. Pensamos em como atrair o público. Às vezes, você pode não gostar de cinema, mas pode gostar de pipoca grátis, sabe? Acho que é uma questão de sedução. Acho que podemos pensar nisso como uma conquista. Falar, cara, não precisa se comprometer, é só 20 minutos. É uma sala climatizada, com ar condicionado, e tem pipoca grátis. No pior dos casos, você vai estar ali, gastando tempo. Vai ficar sentado, olhando o celular? Então, faz isso em uma sala climatizada com pipoca grátis. E aí, as pessoas assistem, aplaudem, se emocionam. Teve uma situação em que um senhor perguntou: "Mas como é que entra? Eu nunca fui a uma sala de cinema." E estamos falando de um país onde não há muitas salas de cinema nas cidades. A porcentagem de cidades com salas de cinema é muito baixa. E, nas cidades que têm, como são essas salas? São aquelas de shopping, mais comerciais. Por conta da distribuição, há menos acesso a filmes nacionais nesses cinemas. E a gente ainda paga pelos filmes. Eu acho que fizemos um milagre com esse dinheiro.


Esse projeto da rodoviária gera alguma receita para vocês? Entra alguma coisa no bolso de vocês? Ou ele é completamente custeado pela Lei Paulo Gustavo?


O projeto é todo executado com recursos da Lei Paulo Gustavo. E aí a gente começou a fazer essa conta. Estamos falando de um projeto pequeno, que, felizmente, contou com esse incentivo. Mas, para a execução, a gente precisa de mais dinheiro. Para um projeto desse porte, para uma execução com dignidade, eu digo. Com todo mundo trabalhando e recebendo, e os filmes também recebendo de forma digna. A gente paga pelos filmes. Não o que a gente gostaria, mas eles recebem por exibição. E isso é algo que começamos a fazer com mais veemência: a gente faz de tudo para não exibir filmes sem pagar, sabe? Ou não licenciar filmes sem oferecer algum valor, mesmo que simbólico. No caso da rodoviária, a gente paga. Uma amiga que tem um filme até falou: “Cara, eu não sei como vocês conseguem fazer tudo isso e ainda pagar o filme.” Porque a gente não pensa o curta só como um produto, mas sim como algo que deve ser remunerado por exibição. Ele tem um valor, né? Por lei, por garantia, por conquista da classe.


Ano passado, fizemos uma exibição no MASP, de cinema sobre HIV, e a curadoria dessa exibição foi da Cardume. E lá conseguimos pagar R$600 por uma exibição de curta. Porque a gente acredita que existe uma dignidade para o realizador, para a pessoa que produziu aquela obra. Hoje, a verba que sustenta a Cardume vem de projetos nos quais atuamos como produtores. Então, estamos produzindo um curta em BH. E temos um projeto que está para começar agora que é o Curta na Kombi: exibições de curtas nacionais em três cidades do interior de Minas, dentro de uma Kombi. É um projeto que já existia, e agora é uma parceria com a Cardume, para viajar e exibir filmes pelo interior. Acho que o que a gente busca são parcerias com projetos que façam sentido, que tenham a ver com a nossa proposta. A ideia é justamente essa: levar curtas para lugares diversos, com estrutura, com qualidade de exibição.


Claro que nem sempre vamos ter o melhor projetor, a melhor qualidade de som, sabe? Mas esses projetos precisam existir de algum jeito, para que a gente consiga mostrar que dá conta. E agora tem toda a luta pelo VOD, né? O Daniel está muito à frente disso, indo para Brasília, participando de reuniões... Ele está muito focado nessa frente de diálogo com a Secretaria de Cultura, com a Secretaria de Comunicação. Então, é um pouco isso: atacar todas as frentes possíveis, sabe? Porque eu acho que é isso que faz a Cardume. Por isso é difícil dizer que somos "só um streaming", porque a gente começou a fazer muitas coisas ao redor. A parte do streaming, esse lugar de exibição de curtas online, é o centro. Mas essas outras ações complementam. São braços do mesmo corpo, filhos da mesma mãe. É tudo voltado para levar os filmes para muitos lugares, aproximar o público, conversar com realizadores, pensar em estratégias de distribuição.


A gente trabalha meio no pós-distribuição. Porque a gente defende muito, inclusive, que as pessoas façam esse circuito de festivais. Ele é importante para o filme, para a classe, para o artista, para os realizadores. E tem uma coisa que a gente sempre tenta fazer: quando a gente realiza curadorias, a gente toma o cuidado de também selecionar filmes antigos. Porque a gente entende que existem produções que foram feitas e tiveram poucas oportunidades de exibição. Hoje, a gente tem mais possibilidades para os filmes, mas também temos uma produção imensa de filmes nacionais, muitos deles muito bons, que não circularam tanto. Ou que circularam apenas em festivais e não chegaram a outras janelas de exibição. Então, a gente pensa essa curadoria de forma a misturar essas produções, para dar novas oportunidades de circulação para esses filmes.


A Cardume é um projeto de impacto nacional. Você sente que as pessoas estão entendendo o que vocês estão fazendo, a importância que isso tem? Você vê isso refletido nessas discussões sobre políticas para o futuro? 


Cara, vejo, e acho muito pertinente essa discussão. Eu acho que a gente ainda pensa em política pública muito focada em produção, e isso é uma fala da Lia Bahia que eu gosto muito, porque a gente precisa pensar em distribuição. E aí eu acho que essa é a discussão. Acho que há uma abertura das pessoas pelo audiovisual nacional, porque, quando elas têm a possibilidade de assistir, elas gostam. Na Gol, por exemplo, quando uma pessoa assiste um curta num voo, ela desce do avião, procura o nome do filme, encontra o nome do diretor, acha o Instagram e escreve uma mensagem. Libidinalmente, é uma puta atitude. O contato não estava facilitado, né? Ela viu no avião e foi atrás depois. Então, o que eu acho é que a gente ainda está num momento de transição, tentando pensar política pública também como acesso. Ou talvez numa fase de criar estratégias mais inteligentes de distribuição, de aproximar, de promover sessões.


A gente tem que se aproximar das pessoas. Em algum momento, o cinema se distanciou. E eu acho que isso tem a ver com discurso de classe mesmo, sabe? O teatro era popular. Sempre foi o mais popular. E aí, quando ele vira uma estratégia burguesa, ele se afasta das pessoas. E o cinema, acho que a gente pode pensar da mesma forma: o acesso ao cinema foi se tornando menos popular. A gente fala muito disso. A gente brinca que queria fazer uma exibição de cinema na feira. É um sonho nosso. De atritar essas coisas mesmo. Porque é onde as pessoas estão. E eu acho que essa é uma discussão urgente. Urgente no sentido de estratégia. Porque, se a gente quer se aproximar das pessoas, a gente precisa, de fato, se aproximar delas. E isso exige negociação. É algo que a gente conversa muito na Cardume. A Luciana, por exemplo, que é curadora, faz isso muito bem.


Quando a gente pensa em curadoria, ela é pra quem? Pra quem eu tô fazendo uma seleção de filmes? Você não leva Camões pra quem tá aprendendo a ler. Pra quem tá começando a escrever. E essa é uma linguagem muito poderosa. Se eu quero aproximar as pessoas do cinema, eu preciso realmente me aproximar. Preciso encontrar um jeito. E falo isso sem querer subestimar o entendimento das pessoas. Mas eu acho que é um processo de mostrar e ver se a pessoa quer retornar, sabe? Como a gente atinge quem está distante? Como a gente convoca quem não teria condições de ir a uma sala de cinema, por exemplo, quem está na rodoviária? A coisa é essa. Tem uma parte da revolução que pisa nesse chão. Que pisa onde as pessoas estão. Que se aproxima de verdade.


 

Luiz Fábio Torres é ator, diretor e sócio da plataforma Cardume Curtas, dedicada ao cinema independente brasileiro. Atua na curadoria e exibição de filmes nacionais, como no projeto Cine Cardume Rodoviária, e participa como jurado em festivais de cinema. Formado em Artes Cênicas em São Paulo, já trabalhou como ator em Belo Horizonte, Buenos Aires (AR) e Porto (PT). É fundador do grupo de teatro Espuma, e atua no audiovisual em projetos como "Eu Estou Vivo", premiado no Festival de Cinema de Vitória em 2022, "Once Halcones" (Disney Channel) e no longa"Desejo é o Nome do Homem que Eu Amo".

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