Após uma sequência afetuosa ao visitar o irmão e a sobrinha, Aisha (Aisha Brunno) é entregue à perambulação da cidade, com burburinhos difusos e buzinas insistentes. A câmera circula seu corpo, a fim de visualizar a face que recebe tais informações. Enquanto o movimento é realizado, o hino mineiro "Tudo o que você podia ser" é tocado ao fundo, quase abafado pela paisagem sonora, mas suficientemente audível para nos informar sobre as promessas que guardam o olhar da personagem. Trata-se do último dia de Aisha na cidade em que circularam seus afetos e onde construiu companheirismos, uma vez que está se mudando para cursar Ciências Sociais em São Paulo. Vista como preâmbulo, a cena certifica a narrativa de possibilidades, semelhante à música que dá nome ao filme e inaugura o clássico Clube da Esquina, perpetrado por comentários referentes ao desenvolvimento social, os laços afetivos e o espaço como lugar indistinto das vontades corpóreas e espirituais.
Combinando elementos da linguagem documental com ficção, o novo filme de Ricardo Alves Jr. é um esforço narrativo descentralizado, notado não apenas pelos enquadramentos observativos e pelo apreço à língua falada cotidianamente, sem teatralidade, mas pelo contorno estético enquanto ação comunitária. Mais do que um retrato sensível devotado aos lugares e pessoas, acompanhamos em pouco mais de uma hora a relação de um quarteto que concentra representatividade trans e não-binária. Embora orientada pela despedida de Aisha, as relações desvelam entraves e conquistas humanas, sobretudo ao dedicar momentos fortuitos aos depoimentos de cada personagem e interação individual com a cidade e terceiros. Nesse sentido, a fita aposta no registro cinematográfico como política afirmativa, possibilitando o contato do público com grupos de referência étnica e social.
O ponto de vista próximo, traço prontamente cativado pela leveza expressa pelas personalidades, provoca uma impressão incomum: plenitude narrativa sem necessariamente recorrer aos traumas de forma direta. Frequentemente, o cinema disposto a narrar trajetórias marginalizadas recai sobre clichês, relegando estritamente ao drama político as possibilidades de transmissão dialógica. Indo na contramão, o filme de Alves Jr. é feliz ao abstrair das banalidades o necessário para comunicar lutas, tanto durante as refeições à mesa quanto através de chamadas a longa distância. É devido a essas escolhas que a fita é agraciada com inesperada e verossímil vitalidade, revelando a capacidade articulatória entre o quarteto e a câmera, colocada como quinto membro nas ações que se desenrolam. Por estar tão perto, os registros se tornam palpáveis e guiam o olhar com aparente emoção e espiritualidade, similarmente a outras produções brasileiras contemporâneas, à luz do critério de esvaziamento da causalidade.
Todavia, para não dizer que tudo são rosas, a direção peca em determinados momentos demasiadamente roteirizados, postos pela condição ficcional dos atos. Embora o longa esteja alinhado a uma perspectiva naturalista, é evidente que o arco narrativo de Bramma (Bramma Bremmer) é o mais afetado pelas "necessidades" ficcionais, seja na conversa com a mãe ou na sequência do ônibus, que resultam em cenários de homotransfobia. As intencionalidades soam forçadas, em particular no modo como as personagens se portam, desniveladas da tonalidade geral da obra, constituída a partir da descontração da fala e dos corpos diante da câmera. Em retrospecto, o peso da roteirização parece enfraquecer as possibilidades assinaladas pelo brilhantismo da proposta inicial; mas, no fim, soam apenas como desvios tonais que não corrompem a experiência. Ao contrário, nos fazem valorizar os momentos e atuações despidas de ordenamentos, especialmente quando o quarteto se reúne para conversar e rememorar anedotas.
Tudo o que Você Podia Ser é, em suma, um abrandamento cinematográfico necessário para discutir visibilidades. O temperamento, facilmente associado ao contexto vivenciado pelo quarteto, decorre de uma época em que a crítica à violência ética permite a circulação dos afetos com maiores gracejos. Afinal, trata-se de corpos dissidentes, incapazes de seguir as normas impostas por um regime binarista e heteronormativo. O amadurecimento também é percebido nos créditos finais, com cada uma das personagens assinando os diálogos. Vista como abertura à produção, esse fator confere ao filme uma sinceridade sentida em cada personagem, seja na iluminada atuação de Will (Will Soares) e interações com Aisha, seja quando vemos o cuidado de Igui (Igui Leal) com sua casa repleta de plantas ou no momento em que abraçou demoradamente Bramma na cozinha. Há um vínculo expresso entre cinema e vida, algo difícil de categorizar propriamente. Mas, certamente, é uma empreitada cinematográfica que reflete laços políticos e coloca o regime de alteridade como força motriz, capaz de ordenar, a partir da trivialidade e convivência com o outro, as potências da vida.
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