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Foto do escritorFernando Figueiredo

"Todo Mundo Ama Jeanne": Uma Comédie-Française

Blanche Gardin em Todo Mundo Ama Jeanne. Foto: Divulgação/ Imovision

Jeanne (Blanche Gardin) é uma empreendedora em ascensão à frente de uma ideia ambiental revolucionária: uma sonda marítima projetada para capturar microplásticos nos oceanos. No entanto, após o colapso do equipamento, sua startup ecológica afunda. Em um ato desesperado para salvar sua pesquisa, Jeanne se lança ao mar. Esse momento é registrado por curiosos e rapidamente se torna motivo de ridicularização nas redes sociais. Exposta na internet, falida e endividada, Jeanne conta com o apoio do irmão Simon (Maxence Tual) para viajar a Lisboa visando vender o apartamento de sua mãe (Marthe Keller), que se suicidara no ano anterior, na tentativa de se reerguer financeiramente. Jeanne agora enfrenta uma depressão agravada pela perda recente da mãe e pelo fracasso devastador de seu negócio. 


Em sua jornada de reconciliação consigo mesma, Jeanne é atormentada por seus fantasmas interiores, representados por uma espécie de voz da consciência na forma de um pequeno personagem ilustrado. As animações realizadas pela diretora Céline Devaux, apesar de repetitivas e monótonas, ajudam a ditar o ritmo do filme. À medida que Jeanne se estabiliza emocionalmente, seus pensamentos intrusivos tornam-se menos frequentes, verborrágicos e conflitivos, e se transformam em reações mais sensitivas e empáticas. Em uma cena, Jeanne chora ao cheirar o casaco da mãe, e a vozinha sofre junto com ela.


No aeroporto, Jeanne encontra Jean (Laurent Lafitte), um ex-colega de quem não se lembra. Ele é um cleptomaníaco excêntrico que competirá com o charmoso Vitor (Nuno Lopes) a atenção da mulher. Embora ela tenha um impulsivo encontro íntimo com Vitor, é Jean quem a ajuda a reconhecer sua depressão, uma doença que ele mesmo já enfrentou no passado. É ele quem dirá que ela “brilha como o sol”, mesmo fechada em seu mundo sombrio, sempre trajada da cor preta. Os opostos se atraem, mas depois se repelem através do riso e da ternura. 


Todo Mundo Ama Jeanne explora as tradições das artes francesas. Do teatro, herança de Molière, a obra extrai o típico humor da Comédie-Française — Laurent Lafitte é um ator da renomada companhia —, caracterizado pela autodepreciação e pela habilidade de rir de si mesmo. Do cinema, as longas caminhadas dos personagens pela arquitetura local, um hábito de muitos cineastas da Nouvelle Vague e de diretores como Philippe Garrel, são utilizadas como um recurso narrativo que reflete a consciência dos personagens, sempre à procura de algo ou traduzindo a efemeridade ou imprevisibilidade dos encontros amorosos. Porém, Devaux trabalhará todas essas nuances, outrora autocentradas na cinzenta Paris, em uma cidade estrangeira. Lisboa, apesar da crise, resultante das transformações sociais impostas pelo turismo exacerbado e pela especulação imobiliária, que a diretora faz questão de criticar, é ensolarada e colorida, contrastando com a personalidade de Jeanne.

Foto: Divulgação/ Imovision

A força do filme reside menos em gestos dramáticos, lágrimas e gritos —  os personagens são contidos em suas ações — e mais em suas contradições ao tentar encontrar uma harmonia narrativa. O equilíbrio entre humor e tragédia, o cinismo de Jeanne e a loucura gentil de Jean, a oposição entre a interioridade da personagem e o mundo exterior, os monólogos acelerados da consciência e a lentidão corporal da protagonista, o suicídio contra a vontade de viver, o que se pensa e o que se verbaliza, a simplicidade infantil das ilustrações (consciência) e a complexidade das neuroses, são pesos na balança que criam um rico mosaico de tensões e simetrias.


Devaux permite que cada personagem e ação tenham um tempo e um espaço para se desenvolverem e existirem dentro do enquadramento. Em uma bela sequência do filme, Jeanne, Jean e Simon quebram toda a louça velha no chão do apartamento, em um plano zenital fixo que detalha os cacos de porcelana, representando um belo momento de libertação da protagonista.


O acaso é o que restabelece a vida de Jeanne. Foi o acaso que proporcionou seu encontro com Jean no aeroporto; foi o acaso que fez com que seu projeto, esquecido no fundo do mar, registrasse o movimento raro de água-viva, oferecendo uma oportunidade para se reerguer profissionalmente. O acaso lhe trouxe o amor e devolveu sua carreira.


Na Cahiers du Cinéma, número 790 (setembro/2022), Louis Séguin escreveu que, por trás da incapacidade de Jeanne em salvar o mundo e organizar o apartamento da mãe, por exemplo, existe nela uma necessidade de se sentir útil e encontrar coragem para agir. Essa provocação da ilusão de conseguir fazer algo pela primeira vez e de encontrar um impulso vital em meio ao sofrimento dão encanto ao filme. Todo Mundo Ama Jeanne é uma luz no fim do túnel para o gênero da comédia, que há muito tempo estava em declínio no cinema francês.

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1 Comment


breno97xavier
Jul 23, 2024

Excelente texto. Como faz para ter acesso às novas edições da Cahiers? Ce paga a revista?

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