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Território Bairrista: A Geografia das Imagens de "A Primavera"


Divulgação: Site da Mostra de Tiradentes
Divulgação: Site da Mostra de Tiradentes

Com a efervescência do movimento Manguebeat nos anos 90, Recife vivia uma intensa turbulência cultural, marcada por um processo de transformação. Pontos de encontro como a Soparia, o Alto do José do Pinho e o centro da cidade se tornaram polos de celebração e resistência, vibrando com a cultura local e os elementos que tornavam nossa identidade tão singular. Em 2002, o realizador Cláudio Assis lançou Amarelo Manga, obra que até hoje é considerada a mais autêntica representação dos espaços urbanos recifenses. Ao assistirmos ao filme, somos atingidos pela textura granulada do chão das ruas, pelo cheiro, pelos corpos e pelas risadas de bar. Durante um período, o longa-metragem se tornou referência para outras produções pernambucanas. No entanto, retratar a cidade na tela nem sempre garante a criação de novas reflexões. Ainda que a estética imagética de outras obras carregasse essa energia visceral, a forma muitas vezes carecia de um olhar mais particular e inventivo.


Nesse contexto, em 2025, surge A Primavera, dirigido por Daniel Aragão e Sérgio Bivar, que propõe uma nova perspectiva sobre a capital pernambucana. No entanto, essa abordagem criativa também pode resvalar no excesso, arriscando se tornar uma espécie de propaganda da cidade, em vez de lançar um olhar inovador ou criativo sobre ela. 


Após um longo período sem que uma obra mobilizasse a cinefilia brasileira para um debate mais amplo sobre representações dentro da tela — desde Vazante (2017, dir. Daniela Thomas) —, A Primavera rompeu esse silêncio na 28ª Mostra de Cinema de Tiradentes. No entanto, o filme rapidamente se tornou alvo de polêmicas, atravessando a chamada “cultura do cancelamento”, tanto pelo histórico pessoal do diretor quanto pela forma como a câmera explora os corpos das personagens femininas. Enquanto as figuras masculinas são cuidadosamente resguardadas, as femininas são expostas de maneira recorrente, num padrão que não parece ingênuo. O debate se arrastou por quase duas horas, sem que os realizadores apresentassem argumentos convincentes sobre suas escolhas estéticas e narrativas. Além disso, A Primavera adota um olhar presunçoso sobre os moradores de rua do centro do Recife, recorrendo a um estetismo que, em vez de aprofundar as contradições da cidade, acaba por transformá-los em um mero recurso visual apelativo. 


Ainda assim, pretendo abordar outras questões em torno do filme, pois, após o lançamento, a obra já não pertence mais ao diretor — mesmo que este seja Daniel Aragão. A Primavera narra a trajetória do poeta Jeová, cuja vida começa a mudar ao se apaixonar por Maria, uma garota de programa do centro do Recife. Ao longo de 110 minutos, o filme orbita essa paixão — tanto pela mulher quanto pela cultura que envolve a cidade.


Daniel Aragão à direita e Sérgio Bivar à esquerda (Foto: Leo Fontes)
Daniel Aragão à direita e Sérgio Bivar à esquerda (Foto: Leo Fontes)

Para quem não sabe, o longa-metragem traz uma forte influência de Miró da Muribeca, um dos poetas contemporâneos mais importantes da história do Recife. Em sua poesia, a presença das ruas, do passado e da mobilização constante do presente eram elementos marcantes. Durante sua vida, Miró caminhava pelas ruas — às vezes falando sozinho, outras vezes declamando poesia —, carregando consigo a pulsação da cidade.


A câmera de Daniel Aragão, que também assina a direção de fotografia, parece absorver esse espírito ao atravessar os espaços urbanos com uma mobilidade singular. Como ela percorre a cidade remete ao caminhar de Miró, evocando uma proximidade íntima com os corpos e as paisagens. Esteticamente, essa abordagem lembra o estilo de Terrence Malick, em que a câmera vaga junto aos personagens, quase como uma presença constante que insiste em manter o contato com o espaço, mesmo nos momentos de aparente solidão.


No caso de A Primavera, embora estejamos diante de uma história de amor, não há como dissociá-la dos momentos de reflexão solitária. Afinal, o que seria do amor sem os instantes em que o pensamento vagueia por conta própria, em busca de sentido? 


Entretanto, o que inicialmente parecia diferenciar a obra em questão de outras obras pernambucanas contemporâneas logo se revelou um ponto, no mínimo, exagerado dentro da narrativa. A câmera, que antes sugeria uma mobilidade poética, começa a acelerar de forma descompassada, como se estivéssemos em outro plano temporal. Ao mesmo tempo, o filme tenta se manter preso a um realismo moralista — especialmente na trajetória do poeta, que deseja que a personagem feminina abandone sua profissão para viver com ele em seu apartamento velho, enquanto ele escreve poesia.


Esse choque estético constante entre forma e conteúdo provoca um estranhamento: se a câmera é tão dançante e inquieta, por que se prender ao moralismo de certo e errado, ainda mais ao tratar de figuras como Miró e da própria cidade do Recife? Durante o debate, houve quem afirmasse que espectadores não pernambucanos — ou que não frequentam o Bar do Provinha (esse bar é foda) — compreenderiam dificilmente a proposta do filme. Mas, sinceramente, para que tanto moralismo em uma cidade conhecida pela “gaia”, pelo mijo e pelas festas caóticas?


Talvez — e isso não vale apenas para A Primavera — o cinema pernambucano precise se libertar dessa obsessão em vender a cidade como um cartão-postal, embalando suas contradições em uma estética turística. Recife não é uma paisagem pronta, como um story de João Campos; é mijo no meio-fio, é gaia nas esquinas, é caos e pulsação. Mas, no cinema, a cidade vem sendo capturada de forma anestesiada.


Se, antes, Cláudio Assis chacoalhou o olhar com Amarelo Manga e Baixio das Bestas (2006), hoje parece haver um receio em mostrar a cidade fora de uma lógica palatável. Os cineastas continuam apontando suas câmeras para o casario colonial, os monumentos históricos, as fachadas de um Recife "autêntico", como se a cidade estivesse congelada no tempo. Mas onde estão as novas imagens? O concreto também carrega arte, o caos também compõe poesia. Se Miró transformava os becos em versos, por que seguimos enquadrando os mesmos prédios? 


Quero ver a cidade na sua complexidade visceral, com sua beleza ruidosa e sua dureza cotidiana. Quero ver a tela como uma explosão de experiências e contradições,  que nos joga na lama sem medo de nos sujar. Que as telas tragam não só o antídoto, mas também o veneno — porque o Recife é isso: cura e veneno, lado a lado, sem máscara ou luva de plástico. 


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