top of page
Foto do escritorMontez

Sobre água, imersão e experiência


Assim como a água que molda seu curso conforme o terreno que percorre, uma boa experiência cinematográfica precisa fluir suavemente por diversos elementos, criando um caminho envolvente e cativante. A sala escura, o som de qualidade e a imagem impactante são os leitos por onde essa experiência se desloca, mas a verdadeira magia acontece quando a imersão funciona, levando o espectador para além das simples margens visuais e sonoras. Em um estado de transe cinematográfico, o espectador não é mais um mero observador, mas sim parte integrante da paisagem audiovisual. Isso transforma uma simples ida ao cinema em uma excelente experiência cinematográfica. 


É a partir desse entendimento que a performance de Mayara Ferreira e Dyllan na abertura da sessão Chama Curtas, apresentada pelo Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, nos conduz ao universo aquático dos quatro curtas-metragens exibidos, mas não apenas isso: os corpos em movimento e os gestos dos dois artistas desenham um processo contínuo de imersão, fluem em harmonia com as narrativas que se desdobram na tela. Essa performance corporal encontra-se com Corpo Onírico (2022), primeiro curta apresentado, dirigido por Marina Mahmood. O filme lida com a movimentação de três corpos femininos, incluindo o da diretora, quase como se fosse possível extrair da imagem uma ideia de sagrado – e, de fato, é. 



A abordagem da realizadora em relação aos quatro elementos – terra, água, fogo e ar – revela não apenas um cuidado estético, como também uma exploração sensorial profunda. Cada movimento, cada composição visual parece ser uma busca pela transcendência, como se os corpos em cena estivessem em comunhão direta com as forças primordiais da natureza. O alcance que nossos poderes de compreensão não podem atingir ressoa no segundo curta exibido: Pattaki (2019), uma co-produção Brasil-Cuba, dirigida por Everlane Moraes. Aqui,  corpos estão envoltos por água, assim como as lentes parecem fazer parte desse olhar submerso. A sensibilidade de Moraes está em algo que a liga a Mahmood, na hábil maneira de construir um universo dentro de poucos planos e muita sugestão. 


Cria-se um espaço para o sagrado, alcançando uma fantasmagoria que está na imagem, mas a ultrapassa. O espaço entre vida e morte, entre real e espectral, se faz indiscernível. É quase como se a cineasta se encontrasse com o realismo fantasmagórico de Pedro Costa ou Apichatpong Weerasethakul. A beleza do plano final do filme e o impacto que ele causa está justamente nesta crença no quadro e no que ele tem de mais divino. Na confluência aquática da curadoria, isso se liga com Iceberg (2015), terceiro curta exibido, dirigido por Juliana Gómez Castañeda. Teresa, a protagonista, é uma mulher que vive rotineiramente com sua cadela Diana. Elas saem para pescar e, frequentemente, ela retorna ao lar sem adquirir nada; lamenta a ausência de sua mãe, sua filha encontra-se distante e a apreensão em relação a sua neta a domina. 



Para lidar com as dores, ela se entrega à dança e entoa suas angústias junto aos companheiros. A música que ela canta e a prece que ela faz diante do túmulo de sua mãe, próximo às águas, fazem com que esse sentimento se torne mais forte. A linha emocional trabalhada por Gómez Castañeda é conduzida com delicadeza, como se a cada nova cena estivéssemos observando e colhendo mais sobre Teresa, até a explosão sentimental, que parece fazer com que as lágrimas ultrapassem os limites do quadro e inundem a sala de cinema – sala esta imersa em uma sequência de filmes cuja finalização só poderia ser feita dessa forma, exibindo como último curta A Felicidade Delas (2019), de Carol Rodrigues.


Neste, duas mulheres fogem juntas da polícia depois da Marcha Mundial das Mulheres. Sem qualquer diálogo trocado, elas se entendem através dos gestos. O ato de estender a mão ganha significados maiores, e o toque, o afeto de forma geral, se torna quase um ponto de ebulição. Só resta deixar com que a água faça exatamente aquilo que se espera dela: vaze e ocupe todos os espaços. Assim como os filmes e o cinema. Nós, como espectadores, estejamos abertos para que essa água afetiva nos atinja e nos modifique.


 

Esse texto faz parte da cobertura da Revista Nostalgia do programa Chama Curtas do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco. No coração do projeto, há o intuito de dar visibilidade a curtas-metragens e, a partir deles, provocar debates, porque a sala de cinema é nossa ágora.

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page