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“Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida, dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou, eu vou até o fim cantar”
– Elza Soares, Mulher do Fim do Mundo
Moral e ética são conceitos que se diferenciam pela abrangência: o primeiro é restrito aos códigos de conduta individuais, e o segundo, aos coletivos. No meio, rege um Estado, responsável por assegurar a todos garantias que permitam condições dignas e igualitárias de vida. Janaína – ou Jana (Mayara Santos) – senta em sala de aula, nas lições do curso de Direito, enquanto professores discorrem sobre essas mesmas questões teóricas, um pano de fundo que realça constantemente a dicotomia ilustrada em tela. Tratando-se de países em que o aborto é criminalizado, há desamparo.
Ainda Não É Amanhã (2024, dir. Milena Times) se debruça sobre a angústia de uma jovem estudante universitária após descobrir uma gravidez indesejada. Aluna dedicada e primeira da família prestes a conseguir uma graduação, Jana logo vê sua vida sair dos trilhos depois da descoberta. Vivendo com sua mãe e sua avó na periferia de Recife, seus dias, a princípio, seguiam uma mesma rotina de faculdade, tarefas domésticas e encontros com sua melhor amiga, Kelly (Bárbara Vitória). Com a confirmação das suspeitas de gravidez, a protagonista gradativamente parece se tornar uma casca de si mesma, perdida no terror e na incerteza do futuro que a espera. Ainda que o pai do bebê seja seu namorado, que afirma estar com ela perante quaisquer durezas, o longa se volta inteiramente para o enfrentamento emocional da garota, com um domínio de narrativa que permeia todo o seu decorrer.
Através de sua frontalidade, o filme ilustra as várias camadas em que o tema está envolto por meio das mudanças emocionais que ocorrem com sua personagem. Mayara Santos dá vida às tantas nuances de sentimentos que atravessam qualquer pessoa envolvida no mesmo tipo de situação, e a câmera parece se fixar em seu rosto na maioria do tempo, buscando acessar sempre um pouco mais de sua intimidade. Os planos se demoram, como que levando o espectador a submergir no mesmo mar de sensações. Da retração à raiva, é por essa observação da corporeidade e pela atenção aos gestos que a obra transmite força, sempre em congruência no tom de carinho que adota para seu todo. Trata-se de um uso da forma que não abandona a ideia do realismo narrativo, mas tem consciência do poder da imagem concatenada e deliberada. Enxergar Jana em constante estado de ansiedade e silêncio tão de perto é um realce da solidão que atravessa inúmeras experiências similares às dela.
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Ao manter sua coerência, entretanto, e não priorizar a via dramática exacerbada ou trágica, Ainda Não É Amanhã se decide sempre pelo lado de seu afeto. Embora perpassada por dificuldades monetárias, legais e logísticas, a protagonista tem em suas amizades um tipo de apoio incondicional, emocionante sobretudo por sublinhar a cumplicidade que provém do compartilhamento de histórias. A quebra de silêncio, por mais que vagarosa e bastante seletiva, é a virada de chave que impulsiona a solidariedade de outras personagens ao seu redor, em um retrato de medo e naturalidade que chega exatamente onde almeja. Aqui, Times escolhe não apontar como deveria ser um procedimento ideal para pessoas que decidem seguir em frente com um aborto, mas reforçar como o é, em sua verdadeira recorrência, sem ausentar os perigos e dúvidas que transpassam a tomada de risco.
Jana, em seu entendimento final, parece compreender que nunca precisou sofrer sozinha. Questiona sua mãe sobre a própria gravidez, e então retorna aos braços dela em calor e ternura. É um entrelaçamento do pessoal que atinge o político, questiona as falhas de todo um sistema e defende o poder da escolha nos direitos reprodutivos sem ter que fazê-lo de maneira didática ou explícita. A jornada da protagonista, então, aparenta firmar seus códigos, estabelecer suas vontades e crenças, mas também ecoar um desejo maior do filme em sua integridade. Sem demais meandros, prioriza a vontade e o direito por aborto legalizado, para além das exceções permitidas no contexto brasileiro. Sem entrar em dilemas morais e de culpa, com sua decisão Janaína restitui-se de si.
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