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Foto do escritorLuiz Gustavo

Sintomas de nós em “Doente de mim mesma”


Doente de mim mesma acompanha fragmentos da vida de Signe (Kristine Kujath Thorp), uma jovem artista desesperada por ascensão que vive com seu namorado, Thomas (Eirik Sæther), um artista iniciante e notório. Durante o filme, a busca dela por fama a faz ingerir medicamentos que provocam conscientemente cicatrizes em seu rosto, o que gera a doença de si por uma obsessão pelo próprio ego. O seguinte texto analisa a doença de si através dos sintomas de nós, ou seja, a palavra “nós” aqui é visto a partir de sua ambiguidade como espectador. Inicialmente se referindo ao pronome e a forma em que assistimos ao filme entre sermos espectadores ou a própria Signe. Posteriormente, “nós”, se tornam conflitos gerados pela montagem a partir de elipses ou planos fantasiosos que deixam lacunas na narrativa por Signe estar escondendo partes de si que demonstram a sua doença.


No início do filme, um vinho caro em uma bandeja é levado até uma mesa. Nela Signe está sentada com seu namorado Thomas em um restaurante lotado de pessoas conversando. O sujeito que observa, nós espectadores, somos formalmente explícitos nas trocas entre plano e contra plano entre esses personagens que planejam roubar o vinho. Vemos com a consciência de que assistimos por conta do olhar sob aquele casal ser feito a partir do uso da posição deles em profundidade de campo e do zoom out. Escolhas formais de voyeurismo, feitas pelo diretor Kristoffer Borgli, visibilizam sintomas iniciais de nós, ou seja, a sensação de que eles estão sendo observados pelos espectadores. No entanto, os sintomas do pronome indicam para uma singularidade da experiência de Signe, a qual sente que está sendo percebida pelos outros ao tentar traçar o roubo. Ela é interrompida por garçons que trazem velas para comemorar seu aniversário. A notoriedade buscada para impressionar posteriormente os amigos com o vinho caro em uma festa é conquistada instantaneamente. Signe se mostra ser algo no lugar de outra coisa, como um signo.


Vivendo nessa ambiguidade, os sintomas de “nós” são, explicitamente, pronome de coletividade ao experienciar o mundo como uma percepção externa que se revela sendo um espelho de si. Como também, “nós” são, implicitamente, uma forma de amarração manifestada imageticamente como um conflito de personalidade gerado pela fabricação de imagens do eu, que não conseguem ser desatadas ao avançar da narrativa, ou seja, o pronome, nós, também se torna algo no lugar de outra coisa.



O objetivo de Signe de ganhar notoriedade entre os amigos com o valor da bebida falha a partir do momento em que ela ocupa o lugar de observadora observada em seu meio social. Ela visualiza o namorado mentir para ela, enquanto conta a verdade para os outros, ocupando uma profundidade de campo em tela, isolada atrás dos amigos que se divertem com a história. A profundidade gera uma falsa noção de liberdade ao nosso olhar, que é determinado por ela, se incluindo no plano. Sua imobilidade na cena perante a verdade verbalizada reflete a nossa condição de crença dividida como espectadores. Acreditamos na imagem, mas também temos consciência de sua artificialidade. Ela o ajudou a roubar, mas não efetuou a ação. Presenciou. Somos seus equivalentes. Enquanto, Thomas, seu namorado, é prestigiado com visibilidade pelo resultado de seus gestos de recontextualização de objetos, seja o vinho caro roubado ou os seus trabalhos como artista dito contemporâneo. O sentido é restabelecido a partir do olhar autoconsciente sob o item. Já Signe se torna contemporânea, ao longo do filme, no momento em que revela a mentira do testemunho presenciado por ela. Temos uma postura intempestiva que busca delatar a percepção do senso comum. Isso pode ser observado em uma determinada cena:


Em seu trabalho de garçonete, Signe salva uma mulher do ataque de um cão dizendo, em um primeiro momento, que ninguém fez algo para ajudar a vítima. O fluxo das imagens vistas por nós, a partir do ponto de vista dela, é denotativo. Não chegamos a pensar que imagens foram censuradas durante o processo de comunicação entre o interior e o exterior social da personagem. No entanto, ela oculta aos outros que disse para ninguém se aproximar da vítima. Sendo vista efêmeramente como uma heroína entre as pessoas, isso causa um afastamento discursivo entre o eu e o nós coletivo que tem contato com aquelas imagens, tornando a realidade consumida instável por não saber qual verdade ela oculta. Ganhamos consciência como espectadores ao acompanharmos as repetições verbais de Signe em discursos como “Disseram que ela morreria se eu não fizesse nada” na tentativa de tornar o seu ato heroico durável pelo mito.



A contemporaneidade dela se expande à medida que sua visibilidade é constante por conta de uma ação negativa sobre si. Ela decide consumir um medicamento que torna a sua pele com uma espécie de alergia, no entanto, isso causa um efeito mais catastrófico do que o esperado por ela e pessoas ao seu redor acreditam que a doença, responsável por desfigurar seu rosto, foi um acidente. Ao consumir o remédio, os outros não viram, ela não deixou o namorado ver o medicamento que causaria isso. Nós vimos. No entanto, o pronome, nós, vai além da expressão de um olhar narcisista sobre o mundo em que vemos como Signe, mas também se torna um conflito de imagens “amarradas” por não saber quais foram mentalmente fabricadas por ela, enquanto são experienciadas pela visão.


Tal construção de sentido tem sintomas de uma montagem feita a partir de relações imagéticas que se tornam arbitrárias e mais duráveis ao longo do filme. A omissão inicial da montagem de um único plano pedindo para que as pessoas não ajudem a vítima de um ataque de um cão é substituída pela adição de cenas fabuladas. Como ocorre ao contar a amiga jornalista, responsável pela divulgação da sua doença rara em jornais, que Sigrid causou aquilo ao seu rosto de propósito e revela verbalmente que estava mentindo. A amiga a perdoa e recomenda que ela escreva um livro sobre isso. No qual, ela mostra o manuscrito biografado ao namorado em uma cena seguinte. Esse fato é experienciado por nós. Vimos aquilo acontecer como uma verdade por conta de que a relação entre o significante fotográfico e o significado da realidade são próximos. Além de que, suas imagens mentais estão sendo compreendidas, por conta disso, são construídas a partir do foco na ação dos personagens em cena. Negligenciando subjetividades oníricas para construir um espaço fílmico de planos conjuntos percebidos como parte da realidade. Tal veracidade se desfaz ao vir amarrada, consecutivamente na montagem, com uma reação corporal de Sigrid a essa mentira que ela conta a si. O sintoma do corte bruto para o presente se manifesta em vômito ou convulsões. São sinais de rejeição do corpo que tenta expelir as ficções imagéticas elaboradas por Signe.


Sua maior construção de aparências se dá através da carreira de moda, a qual materializa conscientemente a fabricação de imagens heróicas que servem a narrativa de estabelecer a aparente continuidade em uma vida afetada pela descontinuidade da aparência em relação aos outros. Mas, ao reagir com convulsões em uma campanha de moda e ir para a reabilitação, o pronome plural também é materializado na presença de personagens vivendo em condições de coletividade. Sigrid tem todos olhando para ela enquanto verbaliza sua experiência, ela se sente observada e compreendida até em suas reações corporais de sussurros lacrimejados do quanto adora viver. Ela sente os ambíguos sintomas de nós, enquanto vive doente de si mesma.

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