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Foto do escritorGabriel Lucas

“Saltburn” e a estética da subversão

"E, se o amor for algo de que se possa compartilhar, suponho que tivemos isso em comum,

também, embora perceba que isso possa soar bizarro, à luz da história que estou para contar."

— A História Secreta, de Donna Tartt


O cinema, como artifício artístico, manifesta-se de diversas maneiras e se metamorfoseia em inúmeras outras. Para isso, a sétima arte pode incorporar — e o faz constantemente — aspectos de diversas outras artes. No romance “O Grande Gatsby”, de F. Scott Fitzgerald, Nick Carraway testemunha o desenrolar de uma tragédia fatal através do retorno repentino de um antigo amor. Em “A História Secreta”, de Donna Tartt, Richard Papen se vê subitamente envolvido em uma trama misteriosa, culminando em assassinatos e no desvelar de verdades secretas. Em Saltburn, essa figura misteriosa do voyeur transfigura-se em Oliver Quick (Barry Keoghan). Calouro de Oxford e socialmente distante da elite universitária, “Ollie” inicia uma amizade com Felix Catton (Jacob Elordi), cuja amizade o conduz à rica mansão de sua família nas férias de verão. É nessa perspectiva que, através da fotografia, disposição dos planos, montagem e narrativa, a imagem em Saltburn assume uma potência construtora e destruidora, entrelaçando os múltiplos elementos da diegese fílmica.


Antes de esboçar a análise de alguns elementos essenciais encontrados na obra, vale refletirmos sobre a estética utilizada para dar caminho à narrativa. Nas redes sociais, costuma-se associar o termo ‘estético’ — ou aesthetic — para denominar os objetos que corroboram uma tonalidade específica dessa obra: o figurino, as cores adotadas, o ambiente da cena, entre outros. Entretanto, para Jacques Rancière, importante filósofo francês, a estética é entendida também a partir da maneira com que a obra se relaciona e dialoga com o espectador. Essa relação, ora de apreciação, ora de estranhamento, pode despertar sensibilidades diversas nesse espectador. Dessa forma, tomo por ‘estética da subversão’ o conjunto de escolhas da cinematografia orquestrada pela obra e que, aliado à forma com que foi recebida, constrói uma dimensão subversiva, ou seja, que se opõe a certos valores morais e éticos conduzidos pelo cinema. Em Saltburn, esses valores são constantemente colocados à prova e, com isso, o espectador se vê constantemente num jogo de legitimar (ou não) as atitudes dos personagens em cena.


I

Na narrativa audiovisual, a forma é crucial para a construção de personagens e eventos significativos. Em Saltburn, a equipe de produção, liderada por Emerald Fennell, demonstra consciência da lógica da imagem ao explorar a dimensão de tela em 4:3 e um jogo fascinante com a luz, os reflexos e o close-up. No entanto, é fundamental avaliar a maneira como cada um desses elementos ou signos — tudo aquilo que é carregado de um significado profundo — deveria, tecnicamente, representar noções outras. O que ocorre em Saltburn é um raciocínio quase que inverso. Mesmo com essa consciência técnica e formal, algumas dessas escolhas se perdem no que tange a sua motivação e potencial, deixando ao espectador lacunas que costumam ser preenchidas pelo argumento do puro fascínio visual.



II

Durante a semana de estreia, o longa provocou um fenômeno de estranhamento com algumas de suas cenas e reviravoltas narrativas — consideradas por uns como deploráveis e subversivas, enquanto por outros como geniais e brilhantes. Gostaria de chamar a atenção para a maneira com que a experiência cinematográfica — assim como toda forma de experiência — tem o potencial de caminhar para estranhamento ao explorar possibilidades inusitadas ou até então pouco exploradas. Com isso, o problema em Saltburn não reside no puro ato de exploração dessas imagens, mas na maneira como essas escolhas “estranhas” e os demais eventos narrativos são encadeados: as cenas eróticas, as perversões e os assassinatos malignos. O final surpreende pois o espectador é enganado. Apesar disso, a ausência de traços psicológicos bem explorados dos personagens desde o seu início destaca a distância entre um Oliver inicial e um Oliver pós-revelação sobre os trágicos na mansão.



III

Uma das virtudes alcançadas por Saltburn é a habilidade em utilizar a montagem e o close-up para construir um dos aspectos psicológicos mais recorrentes no longa: o desejo. Em um determinado momento, Oliver observa o amigo em um ato íntimo e repentino numa banheira. A câmera, dividindo-se entre o olhar voyeurístico de Oliver e o corpo de Felix em close-up progressivo, realça a complexidade psicológica do garoto — complexidade quase como que metamorfoseada ao final. Esses efeitos são realçados por outros elementos presentes na imagem: o vapor que sobe da banheira, a luz excessiva em tons de vermelho que recai sobre o rosto de Oliver e a respiração ofegante de Felix. A própria trilha sonora, intensa, dramática e intranquila, intercede pelo momento e habita os corpos em contato pelo olhar.



Portanto, Saltburn legitima, ao lado de outras produções contemporâneas, o fenômeno da divisão. Enquanto o público aprecia o regime da imagem de diferentes maneiras, o próprio longa divide-se entre a preocupação com o aspecto formal e os eventos subversivos e perturbadores que são desencadeados, e estabelece, na narrativa, uma “estética da subversão”. Assim, apesar de despertar e aguçar a intimidade do espectador, ela se perde em seu próprio ato de contar essas histórias. As múltiplas vidas e subjetividades que estão entrelaçadas dentro da velha mansão de Saltburn são suspensas repentinamente e dão lugar a esses eventos trágicos, cuja real razão e valor é, no fim das contas, desconhecida a todos nós. Trata-se de um filme que cumpre um dos papéis do cinema em provocar os espectadores, suscitar discussões e, consequentemente, repensar o lugar dessa “subversão” nas produções artísticas — no cinema, na literatura e em tantas outras. Cabe aos espectadores assumirem, ou não, algum desses papéis.


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