Em profundidade de campo, observamos uma mulher surgir carregando uma bolsa e sacolas no fundo do corredor de um aeroporto. Ela está distante e caminha em nossa direção. O plano estático revela a superfície de sua imagem à medida que seu corpo se aproxima da objetiva. Ela é loira e deve possuir por volta de 50 anos. A sua perambulação no espaço nos faz questionar de onde ela veio e para onde vai. Sob sua imagem em trânsito, surgem comentários em francês da cena posterior do filme. A omissão da fonte sonora faz com que a língua ganhe atenção para si. Ela é apartada da imagem, distante, tal qual a personagem em deslocamento é de nós, espectadores. No entanto, ao fixar o seu olhar com a câmera pela primeira e última vez no filme, por um momento breve, também me sinto visto pela personagem de forma distante. Estrangeiro a sua vivência. Tal relato de incomunicabilidade de interação visual e gestual ultrapassa a subjetividade do eu ao longo do filme Salamandra. Ao invés disso, ele é desenvolvido nas escolhas de linguagem que explicitam a opacidade das interações entre a protagonista estrangeira e outros personagens. Esse é o filme de estreia da direção do recifense Alex Carvalho, que teve sua primeira exibição no Festival de Veneza em 2021.
Na obra, acompanhamos as interações da vivência de Catherine (Marina Foïs), uma mulher francesa que está hospedada na casa da sua irmã em Recife e, em meio às explorações do ambiente, conhece um rapaz chamado Gil (Maicon Rodrigues). Para construir tal retrato, a linguagem cinematográfica reflete escolhas pautadas em um desequilíbrio na representação objetiva e subjetiva da personagem e sua relação com o mundo. Alex Carvalho opta por ter uma maior utilização da câmera como observadora distante, com planos dilatados, fixos, que variam entre uma perspectiva estrangeira do mundo advinda da protagonista e uma observação objetiva dos diálogos entre os personagens. No entanto, o sentimento de deslocamento de Catherine se perde na interação dela com outros indivíduos. O filme se torna uma observação objetiva da sua incomunicabilidade e transforma a personagem em uma caricatura ao finalizar com uma subjetividade tardia.
Durante a maior parte da obra, contemplo a personagem como um experimento a distância sobre o estrangeiro e seu convívio no Recife, expresso de diferentes modos. Em planos fixos e distantes, no apartamento luxuoso de sua irmã e cunhado, acompanho a relação de Catherine com sua família. Quando ela chega à sala da irmã, há uma rigidez do plano que compõe aquele ambiente. Apesar de todos falarem francês, sinto a incomunicabilidade surgir nos silêncios e vazios daquele grande espaço. As interações entre a família são retratadas em planos tão estáticos a ponto de não sofrerem mobilidades quando os personagens se deslocam naquele ambiente. Em um momento, elas dançam na cena, mas a câmera não dança com elas. Observamos fixamente aquelas interlocuções desajeitadas.
Por outro lado, quando Catherine está sozinha, seu ponto de vista ganha mais destaque nas cenas. Em um momento, ela está na praia e observa outras pessoas. A câmera a torna desfocada do mundo ao seu redor. O seu cabelo loiro é movimentado pelos ventos, e suas observações fazem sentir o seu deslocamento. Em um primeiro plano, ela sente a areia e o mar em seus pés. Isso remete a um dos planos iniciais de Chocolat (1988), da diretora francesa Claire Denis. Tal filme também aborda as interações de uma estrangeira com seus arredores. A diferença, aqui, é que há uma sustentação das contradições da personagem durante o filme de Denis. Seu distanciamento subjetivo é retratado em continuidade pela linguagem. Em Salamandra, a subjetividade da protagonista é enterrada quando ela passa a interagir socialmente.
Podemos observar isso quando ela conhece Gil na praia, e ele pede para ela passar protetor solar em seu corpo. O diretor opta por registrar em longos planos, inicialmente fixos e distanciados das interações das personagens. Deixo de me sentir estrangeiro pela linguagem do filme não traduzir o distanciamento da personagem na imagem. Passo a contemplar, por conta da longa duração dos planos, o desdobramento da dificuldade de interações entre uma estrangeira e um brasileiro. Sem me envolver, observo as ações de um experimento objetivo de incomunicabilidade entre os personagens.
Tal falta de comunicação verbal com Gil ganha flexibilidades da linguagem cinematográfica, que não ocorre com a família, cada vez mais distante. Entre Catherine e o rapaz é desenvolvida uma forma de comunicação própria, que rompe com essa rigidez dos planos da casa da irmã. Ao ir para uma festa a convite de Gil, acompanho a francesa em uma câmera em movimento que segue seu deslocamento em cena. Observo o rapaz, e ela elabora gestos que mostram uma aproximação entre eles, como ocorre quando Gil acende o cigarro dela com o seu ou, ainda, quando eles dançam juntos e acabam se beijando. Nesses momentos, a câmera se diferencia da cena da família por possuir uma flexibilidade maior que a torna, aparentemente, corpórea, e mostra uma tentativa de construção de intimidade entre os personagens.
A relação é desenvolvida por meio de uma comunicação corpórea em diversas cenas de sexo, uma vez que eles não falam a mesma língua. No entanto, isso não significa o fim da incomunicabilidade. Ela volta, uma vez que o diretor explora as individualidades dentro da relação de maneira tardia. Temos uma crise da linguagem íntima que eles construíram entre si na longevidade dos planos e contraplanos das interações. Entre as ações e reações de Catherine e Gil são reveladas mentiras, golpes e violência.
Depois de escolher uma representação majoritariamente objetiva, o relacionamento passa a ser preenchido apenas pelos desejos de Catherine. Assim, voltamos a ter contato com a sua subjetividade. Ela é desenterrada de forma caricata, uma vez que a personagem é colocada como uma Salamandra. Tal como na mitologia, a personagem resiste a um incêndio que ateou contra Gil, depois de ele não satisfazer suas vontades e a ter roubado. Como espectador, não sou afetado pelas suas queimaduras de fogo, já que passei o filme tendo contato com marcas advindas do sol, a distância.
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