Mãos tocam um piano enquanto alguns dos mais célebres nomes da música brasileira são apresentados em uma trilha hipnotizante. O plano abre e um rosto concentrado é intercalado com imagens da infância e juventude da multi-instrumentista e arranjadora que dá nome ao filme. Os primeiros minutos de tela já contam, sonora e visualmente, a proposta de A Música Natureza de Léa Freire, documentário de Lucas Weglinski, que busca destrinchar e, sobretudo, manifestar uma trajetória musical ainda pouco reconhecida pelo grande público do Brasil, apesar de celebrada internacionalmente como uma das mais inventivas e múltiplas obras da música brasileira.
O longa acompanha a vida de Léa desde a infância, a partir da década de 60, paralelamente a um recorte de toda uma geração da música, mas de uma perspectiva singular, visto que, historicamente, o destaque é predominantemente masculino. A partir de entrevistas com nomes como Alaíde Costa e Silvia Goes, conhecemos a história da musicista com enfoque em sua vasta obra, da música de São Paulo e, consequentemente, do Brasil. Mais forte que as palavras são as músicas, que nos fazem perceber rapidamente a profundidade da obra de Léa, intrinsecamente ligada aos múltiplos sotaques e cores do Brasil.
"Villa-Lobos contemporânea", "nova Tom Jobim" ou “Hermeto de saias” são algumas das alcunhas utilizadas para descrever sua obra; apesar de demonstrarem a expressividade de seu trabalho para os autoproclamados críticos especializados, demonstram um aspecto problemático e central na trajetória da instrumentista: o machismo e misoginia. Com vozes prioritariamente femininas, além da própria autora, o documentário também é uma afirmação das injustiças, que rebatem na falta de reconhecimento, numa demonstração da influência da trajetória da musicista para as próximas gerações femininas se posicionarem no fazer artístico.
A trilha, assinada pela própria, conta uma história à parte, enquanto podemos ver os vários entrevistados interpretando peças, além da própria autora, seja em material de arquivo ou inédito. Este acaba sendo o destaque do documentário, que, além de sintetizar mais de quatro décadas de música em pouco mais de 25 passagens sonoras, consegue traduzir a vastidão da obra da compositora de forma literal. Podemos ver a música sendo tocada, a comoção dos convidados e, como certamente foi objetivado, sentirmos nós mesmos a força da música de Léa.
O ar hipnótico mencionado no início, apesar de ter em seu cerne as belíssimas músicas, é sustentado por um trabalho de pesquisa e montagem robusto, ao ilustrar os significados com matérias antigas e os mais variados trechos de vídeos pessoais, demonstrando uma pesquisa aprofundada não apenas da obra sonora, mas de todo material disponível ao longo das décadas, mesmo que este seja escasso por motivos já explicitados.
Não se trata de um filme para especialistas ou grandes admiradores de música, mas de uma excelente apresentação para a obra de Léa e suas extensões. Para se tornar grande fã, quando falamos de arte, não é necessário conhecimento aprofundado no objeto, apenas sensibilidade pontual — ou não — da expressão que nos é apresentada. Nesse sentido, A Música Natureza de Léa Freire é mais que o suficiente para sensibilizar um novo público, além de atender aos já introduzidos com bastidores e interpretações únicas.
O filme é bem sucedido ao homenagear a musicista e transpor sua sonoridade em imagem. Com depoimentos e interpretações de músicas tocantes, somos convidados a conhecer parte da trajetória que inclui a gravação de 7 discos autorais, produção de mais de 25 discos, inúmeras composições, arranjos com algumas das principais orquestras do país e participação com cerca de 50 músicos ao longo da carreira. Léa também é idealizadora do selo Maritaca, sem fins lucrativos, e ativista social através da música. Aos 67 anos de vida e luta, não é uma tarefa fácil traduzir isto em 99 minutos — mas chega-se bem perto de conseguir.
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