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Felipe André Silva

Que Estranho Chamar-se "Salomé": conversa com André Antônio


Divulgação / Vitrine Filmes

A Salomé (2024) de André Antônio é como um monstro, na tela e fora dela. Projeto vitimado pela Era Bolsonaro e renascido como um ser bastante diverso daquele originalmente pensado pelo realizador, o melodrama queer fala de amor, no seu mais perigoso e caricato, de uma maneira que somente um recifense nascido e criado imaginaria. É um filme do mundo, cosmopolita e internacional como sua protagonista, mas extremamente local, com seu léxico, seu tempo, sua cor, algo bastante refrescante num mundo em que tantos criadores se rendem às demandas do tal mercado e fazem filmes extirpados de si mesmos. Nesta conversa, André fala de onde vem, para onde vai, porque fazer e o que deixar de lado, tudo com uma crença inabalável na própria voz.


Felipe André Silva: Eu queria começar falando sobre mudanças, num lugar meio inocente, talvez idealizado, porque você é um caso raro de cineasta que eu acompanhei ao longo de toda a carreira, desde o início. Comecei a minha carreira pouco depois da sua, então pude perceber de perto as mudanças na vida, no mercado, na recepção; tudo o que estava acontecendo com você eu via de muito perto enquanto fazia minhas próprias coisas. Ao mesmo tempo, acho que sua obra é uma das mais uniformes que eu já acompanhei, porque é muito fácil — e isso não é um demérito — olhar para um filme e saber que ele é de André Antônio. Eu acho isso muito bom, porque me parece que você não foi se desfazendo de elementos que definem sua obra para agradar, talvez, ao chamado mercado do cinema mundial. Agora, com a estreia de Salomé e sentindo a recepção do filme, o quanto você mudou, ou não, na maneira como pensa suas imagens? Você ainda se considera o mesmo cineasta ou sua visão está em outro lugar? Não falo de evolução ou de novas referências — embora eu entenda que isso é o que nos leva a outros espaços —, mas o desejo de fazer cinema está no mesmo lugar ou mudou?


André Antônio: É muito louco olhar para trás e ver esse tempo todo em que estamos fazendo cinema paralelamente, nos encontrando e trocando ideias. Eu vejo muitas mudanças, como você falou, principalmente a mudança na recepção. Claro, lembro quando lançamos Mama no YouTube, e eu lembro que ninguém levava aquilo muito a sério como cinema. Era uma galhofa, uma brincadeira. Mas isso mudou bastante. Lembro quando a Revista Cinética fez um especial sobre o nosso coletivo Surto e Deslumbramento, e pra gente foi um marco, uma sensação de "nossa, chegamos aqui, que loucura". Reconhecimento, festivais, tudo mais. E o próprio cinema brasileiro também mudou. 


Quando começamos, havia muito aquela pegada do cinema realista, aquele cinema rarefeito dos anos 2010, e a gente trazia algo mais artificial, mais colorido, mais lúdico, mais caricatural. A gente chegou com uma proposta que criava uma dissonância em relação ao que estava sendo feito na época. E vejo que isso também mudou com o tempo. Hoje, no Brasil, existe uma pluralidade de cinemas, e muitos deles estão mais abertos ao artifício, ao colorido, ao cômico — várias coisas que criam a tônica dos meus filmes e do coletivo Surto e Deslumbramento. Mas, respondendo à sua pergunta de forma mais direta, eu não sei, talvez ainda exista algo daquele André que fez Mama. Sempre que vou fazer um filme, acho que encontro algo daquele André, sabe? 


Eu lembro que coloquei a câmera frontal para os meninos, criando aquele tableau. Poderíamos ter filmado de várias maneiras, mas eu quis criar aquela imagem anacrônica, sabe? Aquela imagem frontal, com uma relação com as artes plásticas, muito mais do que filmar com a câmera solta. Criando ali uma janela, vendo o cinema como uma janela aberta para o mundo. Eu ainda continuo interessado em criar imagens que tenham algo mágico, quase sagrado — no sentido de que aquilo que está sendo colocado na tela não é apenas um registro da vida acontecendo na frente dos nossos olhos, mas quase a criação de ícones, de coisas muito plásticas, muito visuais. Imagens que dialogam com pintura, com imagens mais estáticas. Então, eu reencontro esse André. 


E por mais que o cinema brasileiro tenha mudado muito, acho que isso ainda soa estranho, ainda soa distinto. E sinto que isso se reflete em Salomé também. Lembro que Chico Lacerda me disse algo quando terminamos Vênus de Nyke, filme em que ele fez a fotografia e a correção de cor: "Nossa, o visual desse filme tá muito alienígena, não lembro de ter visto algo assim recentemente". E algo parecido me disseram sobre Salomé também. Então, quando ouço isso, penso: "Missão cumprida". 


Cena de "Salomé". Imagem: Divulgação / Vitrine Filmes

Felipe André Silva: Eu fiquei pensando sobre um certo histórico do cinema queer brasileiro recente. Diferente, por exemplo, do cinema feito por pessoas negras ou por mulheres, parece que existe uma certa resistência do mercado em tokenizar o cinema feito por pessoas LGBT que abordam questões LGBT. Por exemplo, sobre quando surgiu o movimento de tomar de volta as narrativas no cinema feito por mulheres, por pessoas negras, e talvez até por pessoas trans, que encontrou certa abertura e caminhos de fomento. Porém, os filmes feitos por pessoas LGBT, talvez por escolherem narrativas trans, por lidarem com outras camadas de discussão, ainda não conseguiram, de certa forma, quebrar essa barreira no que diz respeito a fomento e financiamento. Temos casos pontuais, como Salomé, que recebeu financiamento público, mas isso não é tão comum. 


E aí, eu fiquei me perguntando: o que você acha disso, já que é uma pessoa que conseguiu, de certa forma, quebrar essa barreira? Eu digo isso porque esse tipo de financiamento público não está necessariamente ligado à formação de plateias ou ao retorno financeiro, mas sim à manutenção e à difusão de várias culturas. Então, por que essas narrativas — como as que a Excesso Filmes, a Anarca Filmes, o pessoal lá do Ceará, você e o Surto fazem — ainda encontram barreiras para serem realizadas nos moldes, entre aspas, tradicionais? Por que é mais fácil conseguir dinheiro vindo da Europa ou dos Estados Unidos para fazer esses filmes do que dentro do nosso próprio circuito? O que explica essa visão?


André Antônio: Eu noto uma coisa que tem acontecido de forma geral no cinema independente, que é o seguinte: as pessoas estão decodificando os filmes, sabe? Por exemplo, A Substância. Esse filme é sobre a indústria farmacêutica, é sobre a preocupação das pessoas no contemporâneo com a beleza, com o mito da juventude, é uma crítica ao capitalismo. O filme dá pistas, entrega elementos para o público entender e se sentir seguro. Ele traz várias questões importantes e relevantes, com as quais eu estava em contato enquanto assistia. Agora, se um filme for mais opaco, se ele não entregar esses pontos de bandeja, o público vai usar essas pistas e esses elementos para sair com a sua "bolsinha de questões", com os assuntos e temas relevantes do contemporâneo. Esse filme, se não entregar isso de forma clara, não vai ter uma repercussão muito boa no circuito de cinema independente, nos festivais, por exemplo. 


No geral, quando um filme é mais opaco, ele não entra nesse circuito do cinema independente, porque ele precisa ter questões. Tem que ser possível "dizer" o que o filme é, seja na sua crítica, seja na conversa com amigos depois. Você quer dizer: "Ah, é um filme sobre isso". Quando não consegue, tipo, Titane, as pessoas ficam: "Mas é sobre o quê? É sobre uma mulher que tem uma parte do corpo de titânio, e ela fica maluca, matando gente por aí?" É algo muito mais opaco, que, na verdade, até parece ofensivo, porque não é sobre nada claramente definido, não parece lidar com questões sociais diretas, sabe? Eu vejo isso também na captação de recursos. 


Se o seu projeto não mostrar direitinho, se não codificar as questões centrais do filme, ele tem muita chance de não ser captado. O filme precisa ser claro sobre os temas que está tratando. Por exemplo, se o seu projeto é sobre uma experiência de transexualidade, você vai mostrar uma personagem fazendo a transição de gênero, sofrendo preconceito, sendo aceita pela família, depois sendo rejeitada pelo namorado. Tudo isso está muito codificado, e você vai ter um "pacote de problemáticas trans" que o público vai assistir e dizer: "Pô, estava refletindo sobre essa temática, sobre essa questão. Foda, muito relevante, muito necessário, um filme necessário". Diante desse cenário, eu concordo contigo que o cinema queer tem um pouco mais de dificuldade. E eu falo de filmes queer no sentido de filmes que são estranhos, como a própria palavra indica. "Queer" significa aquilo que é estranho, dissonante, desconcertante, ambíguo, obscuro, opaco. 


Então, eu acho que, se você for fazer um filme LGBT de tom trágico, por exemplo, uma personagem gay que sofreu muito para ser aceita pela mãe, nesse caso, pode ser que você abra muitos caminhos na captação de recursos. Mas, se você estiver investigando coisas mais opacas, como, por exemplo, sexo — para mim, o sexo é considerado uma "não questão" nesses editais. Salomé sempre teve essa questão do tesão e da "safadeza" muito presentes no projeto, desde o início. Então, foi muita sorte termos conseguido captar dinheiro para o filme, embora o orçamento tenha sido baixíssimo. A gente não teve, por exemplo, o suporte de uma produção estrangeira, o que dá um grande alívio para produções nacionais, permitindo um pouco mais de folga na hora da produção.


A gente não teve esse apoio, foi uma produção apertada, de baixo orçamento. Mas tivemos muita sorte de, aqui e ali, encontrar com pessoas que acreditavam muito no projeto e defendiam o filme. Claro que os currículos prévios da produtora e o meu também ajudavam bastante. Então, se você está fazendo um filme queer, opaco desse jeito, que não entrega de bandeja para o espectador um punhado de questões, mas que talvez o faça se perguntar "que danado é isso?", que encare o mistério e não dê muitas respostas, aí eu acho que você tem que respirar fundo e ter muita paciência para conseguir trilhar esse caminho, porque parece que é um mundo inóspito para esse tipo de obra de arte. E acho que é a verba que vem de fora vai para filmes que estão codificando essas questões e mostrando o Brasil e a América Latina da forma como os gringos querem ver. Eu não sinto que eles querem ver a gente tendo tesão, acho que eles querem ver a gente dentro dessas questões trágicas, enfrentando várias questões sociais, para poderem consumir isso e sentir que, "uau, estamos falando sobre a América Latina, sobre o Brasil, sobre questões muito trágicas que estão acontecendo por lá". Eles se sentem importantes ao ajudar essa periferia do capitalismo.


Felipe André Silva:  Eu tinha outra curiosidade em relação a Salomé. Teu cinema saiu de um lugar muito acadêmico, de certa forma, com essa coisa do dandismo, do luxo, ou de algo literário e poético, como em Canto de Outono, e foi tomando um rumo que culminou em Vênus de Nyke, que foi uma investigação muito direta e explícita do erótico e do sexual, sem que o aspecto acadêmico fosse perdido, porque Vênus de Nyke tem o grande triunfo de unir essas duas coisas, como grandes teóricos fazem, e faz isso muito bem.


Aí, me parece que Salomé é um grande equilíbrio entre todas essas coisas. Mas, me pareceu que, apesar de ser um filme sobre desejo e fetiche, você deu um passo atrás — e não estou dizendo isso de forma negativa — mas parece que houve um recuo nessa investigação que estava se formando sobre o erótico. Tu trouxestes um equilíbrio que, na minha visão de fora (porque eu nunca tinha lido o roteiro de Salomé), parecia que o filme seria muito mais explícito do que realmente é.


Em Vênus de Nyke, você fez um ensaio, uma explosão dessa pesquisa do erótico justamente para chegar em Salomé com ela, entre aspas, balanceada? Salomé nunca foi um filme que teria a intenção de dar continuidade ou ampliar essa pesquisa sobre erotismo e fetichismo, ou, de alguma forma, o fato de ter feito Vênus de Nyke influenciou a ideia de Salomé? Fazer Vênus de Nyke tirou alguma coisa de Salomé?


André Antônio: Salomé é um projeto que venho desenvolvendo há muito tempo. A gente ia filmar em 2019, quando o Bolsonaro fechou as portas da Ancine e o dinheiro não veio. E, nessa época, sim, sua suspeita se confirma: era um filme muito, muito, muito mais sexual e erótico do que ele já é. Era um filme que o tempo todo era sovaco, suor, lambida e cuspe. E depois que a pandemia passou e a gente reaviu esse dinheiro, eu percebi que, por mais que eu gostasse daquele roteiro e, por mais que ainda gostasse muito dele, percebi que estava caindo numa negatividade, num niilismo muito forte. Era como se a vida fosse só prazer, sabe? Era só o sexo que não levava a lugar algum. Não havia nenhum fio de esperança, nem conexão entre essa sexualidade e outros universos, outras sensibilidades, outras facetas do mundo. Foi quando eu disse: 'Não, eu quero reescrever um pouco, quero reestruturar. Quero manter essa questão, mas de uma forma diferente.'


A coisa da família, da mãe da personagem, todo o seu entorno, a tia, as primas… enfim, todo o universo convivendo com essa descoberta erótica, com essa negatividade erótica, com esse niilismo e hedonismo que, para mim, está muito presente naquela seita que explora os 'boys' no filme.


Depois disso, sinto que o filme encontrou um equilíbrio maior. Não pensando no público, mas pensando na minha própria vida, porque eu estava achando muito perigoso aquele lugar tomando um espaço tão grande na minha vida. Então o filme mudou muito de cara, ficou mais esperançoso. Acho que a chegada do melodrama, que não estava lá antes, trouxe elementos como laços familiares, esperança, emoção... trouxe outras emotividades que o sexo sozinho não estava trazendo.


Em relação a Vênus de Nyke, foi uma primeira tentativa de investigar esse mundo sexual que me habita. Já em Salomé, eu continuo essa investigação, mas não queria dar toda a prevalência a isso, porque senti que podia ser mais interessante não fazer o que todo mundo já estava fazendo.


Eu acredito que o sexo sempre traz algo que quebra o academicismo. Apesar disso, acho que Vênus de Nyke tem citações de teóricos, tem citações de Deleuze, de Teresa de Lauretis.


Em Salomé também há citações, como a de Oscar Wilde; no final, a personagem Salomé fala frases da peça. Na cena do fotógrafo, que está fotografando Cecília, os fotógrafos citam um trecho de Huysmans, do livro Às Avessas, a descrição dele sobre Salomé. Também há a presença do quadro de Gustave Moreau, então, de certa forma, eu continuo sendo bem acadêmico. Mas acadêmico não no sentido de fazer um filme acadêmico, ou seja, respeitando fórmulas, mas acadêmico no sentido de pegar essas referências da minha pesquisa e incorporá-las no filme.


Acho importante reforçar o termo 'acadêmico', porque, para mim, um filme acadêmico é um filme de Oscar, sabe? Um filme que respeita uma certa qualidade, um certo padrão. No meu caso, o acadêmico é fazer uma pesquisa e jogar isso ali, sem medo, algo que muitos cineastas acadêmicos evitariam completamente.

Cena de "Salomé". Imagem: Divulgação/Vitrine Filmes

Felipe André SilvaO modo de produção de vocês no Surto e Deslumbramento sempre foi algo muito livre das amarras tradicionais de produção. Isso foi se profissionalizando aos poucos, e mesmo que  vocês tenham feito o primeiro filme de grande escala, ainda era um filme feito entre amigos. Vendo Salomé pronto e pensando, por exemplo, na presença de Renata Carvalho, me parece que é o primeiro projeto em que não estão apenas entre amigos. 


Claro que a gente nota, pela maneira como as pessoas falam do set de Salomé, que se tornou uma grande família, como bons sets se tornam. Mas, me parece que essa é a primeira vez que há uma responsabilidade de sair do cinema super livre e desimpedido e seguir, talvez, algum protocolo de produção. E aí a minha dúvida é a seguinte: primeiro, se realmente foi o caso de ser uma primeira experiência em que as regras de produção se tornaram mais rígidas e se isso impactou de alguma forma na feitura do filme. E, junto a isso, como foi dirigir um elenco com gente que você não tem necessariamente uma liberdade total, como aconteceu com a galera do grupo? Como foi a experiência? Ou, se não foi, se se mostrou diferente do que você esperava nesse sentido?


André Antônio: Em A Seita a gente sentiu muito isso. Sentimos que saímos daquele espaço de festa, estar de ressaca filmando e fazendo os planos enquanto nos embebedávamos de vinho. Quando fomos fazer A Seita, que tinha o orçamento do Funcultura, veio um desenho de produção que nos fez pensar: ‘nossa, a gente perdeu completamente aquela forma bem livre de fazer as coisas’. E isso é justificável, porque é assim: tem mais profissionais recebendo, com a carga de trabalho muito bem definida, e isso é justo. Então, as hierarquias e tudo mais chegaram de uma maneira que sentimos muito. Quando chegamos em Salomé, já tínhamos passado pela experiência de Sonhos de Chico Lacerda, já tínhamos passado por outras experiências em que tentávamos criar uma atmosfera mais tranquila.


Então, em Salomé, realmente, todo mundo sentiu que foi uma energia massa. Por mais que seja leve, por mais que seja gostoso e divertido,... é babado. O filme tinha um orçamento apertado, então tínhamos que filmar em quatro semanas.


Então, tudo o que surgia na hora para experimentar, existia uma resistência muito grande da galera em aceitar: 'Vamos filmar isso aqui?' 'Mas não está no plano, como é isso?' 'Vai dar tempo? Vai atrasar tal coisa?' Porque, é isso, cada segundo conta. Então, essa é uma limitação que eu sentia. Eu queria muito um dia fazer um filme com mais grana, com mais folga, onde a ordem do dia fosse mais aberta e eu pudesse se surgisse uma vontade de experimentar, fazer. Porque, às vezes, não surge. Às vezes, chego numa cena e filmo como estava previsto, sem muito frufru. Mas, às vezes, surge uma ideia diferente, um espaço diferente, e você diz: 'Ah, vamos nessa!'. E outra coisa que eu acho que chegou muito em Salomé, é que eu acho que nos meus filmes anteriores eu estava muito em um lugar seguro, no sentido de que eu estava falando de questões sobre as quais eu tinha um lugar de fala. Quando chega em Salomé, tem não só o fato de Renata Carvalho ser uma grande atriz, mas também o fato de que eu estava ali filmando corpos em primeira pessoa, entrando muito na subjetividade da Cecília, sabe? Algo que eu nunca tinha filmado antes. São corpos que têm uma história, que têm um contexto, que têm uma luta muito específica.


Então, eu tive muito cuidado antes de fazer a cena de sexo. Tentei entender bem se aquilo era, de alguma forma, ofensivo. E essa preocupação, digamos assim, permeou o filme todo. Será que estou sendo ofensivo? Será que alguém não vai se sentir mal com essa imagem? Coisas que eu não tinha nos meus filmes anteriores, porque, realmente, surgiram corpos novos em  Salomé. E a mesma coisa no caso do núcleo da seita, dos boys sendo explorados por aquelas criaturas, que são o Everaldo Pontes e o Geyson Luiz Bom, eu estava falando sobre exploração sexual de alguma maneira. Como fazer isso sem cair numa representação negativa de um boy periférico, de um boy preto?


Foi o primeiro filme no qual fiz questão de ter muito cuidado, porque eu estava, de alguma forma, lidando com questões que eu não tinha a liberdade de abordar como tinha em Vênus de Nyke ou em A Seita. Então, para mim, foi uma produção grande, no sentido de que os personagens trouxeram algo que eu nunca tinha experimentado antes, em termos de cuidado.


Cena de "Salomé". Imagem: Divulgação/Vitrine Filmes

Felipe André Silva: O  cinema queer, o cinema LGBT em Recife, em Pernambuco, segue sendo uma espécie de nicho, porque os temas e os debates, fora do nosso espaço, não avançaram. A gente segue vendo muitos filmes sobre debates de classe, de raça, da classe média alta, ou da classe média alta que olha para baixo, muito interessada em talvez espetacularizar um pouco. E parece que os filmes que a gente faz ainda estão numa espécie de câmara de eco.


Acho que essa premiação massiva de Salomé em Brasília aponta para algo que talvez, pela via difícil, pelo interesse de um público, pelo interesse da crítica, essa manutenção de um tema único dentro do cinema precise mudar. A minha pergunta, na verdade, é: você acha que fazer os filmes que você faz, que a gente faz, ainda é uma espécie de resistência dentro da resistência? Ainda tem um pouco de vingança, de bater o pé no chão ao fazer esses filmes, pela sua vontade de fazer filmes, ou você está fazendo filmes por outro motivo, sem essa vontade de demarcar um espaço e bater de frente com temas que se repetem?


André Antônio:  Eu acho que é uma forma de resistência ainda. Eu lembro quando falei de Passou, né? Você é uma bicha preta periférica fazendo filmes com personagens intelectuais, que estão ali interessados em literatura, que estão numa melancolia que seria muito mais associada a um realizador burguês branco e privilegiado. Você é uma bicha preta super sofisticada que, por acaso, ama literatura e que está investigando sua sensibilidade. Eu acho isso uma forma de resistência.Você está fugindo do lugar que querem te colocar, dos filmes que querem que você faça.


Eu fico pensando no caso de Salomé. Cecília é uma menina que vem de uma família conservadora, provinciana, de classe média baixa, talvez como a minha mesmo. E ela é sofisticada, ela gosta de moda, teve sucesso na carreira. Ela vê o boy que ela quer comer, ela vai lá e come. É essa imagem de uma menina periférica que a gente quer ver. “Será que não é melhor ver ela sofrendo? Será que não é melhor ver ela enfrentando os problemas sociais?”


Não! A gente vai por outro caminho. Aí você me pergunta se eu quero criar um embate, se isso me motiva a fazer filmes e criar um embate com coisas que estão se repetindo. Eu acho que isso não é minha motivação. Eu faço filme, o embate vem. Vou denunciar repetições, vou denunciar fórmulas que se repetem, mas não é por isso que eu faço filme. Porque fazer um filme é muito difícil. Então, se fosse por isso que eu estivesse fazendo filme, pra me vingar de não sei o quê? Não. Acho que não é isso que me motiva. Acho que sou muito mais romântico. Eu quero fazer filmes pra investigar questões que estão me movendo. Pra investigar afetos, sensações e mistérios que estão me atravessando.


E eu uso o cinema pra investigar isso, pra encarar isso de frente. E pra compartilhar isso com outras pessoas. Se, no meio desse caminho, eu encontro esse entorno, vamos embora, vamos lutar. Mas, assim... Se for só por causa disso, eu não faria, não. Tô de boa.


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