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Foto do escritorGabriel Lucas

Procura-se a estrela cadente


Quando nos debruçamos sobre uma obra e nos dispomos a refletir sobre ela, é comum associarmos a outras que, de alguma maneira, são semelhantes – seja na narrativa, no construto estético ou em outros aspectos. Ano passado, assisti a Folhas de Outono, de Aki Kaurismäki, que me conquistou pela delicadeza na capacidade de articular a potência da imagem, o uso do recurso fotográfico e seu propósito narrativo, resultando em um estilo único, coerente e tangível. Em contraste, A Estrela Cadente, dirigido por Dominique Abel e Fiona Gordon, utiliza um estilo semelhante, mas com um efeito quase completamente diferente. Neste texto, tentarei articular como certas escolhas de roteiro, encenação, forma técnica e estilo contribuíram para um resultado essencialmente mediano.


A Estrela Cadente é uma comédia noir – caracterizada pelo seu humor marcadamente ácido – que nos conduz ao subúrbio de Bruxelas, onde o ex-ativista revolucionário Boris (Dominique Abel) trabalha como bartender no pequeno bar que dá título ao filme. A paz de sua rotina é interrompida pela chegada de um homem estranho, que alega conhecer Boris e seu passado. Com a ajuda de seus parceiros Kayoko (Kaori Ito) e Tim (Philippe Martz), Boris despista o homem misterioso e descobre a existência de Dom (também interpretado por Dominique Abel), um homem curiosamente idêntico a ele. O grupo então embarca na missão de conhecer Dom e, através de artimanhas, trocá-los de lugar e de vida. Ao longo do filme, também descobrimos que Dom tem uma esposa, uma detetive particular alcoólatra e desconcertada. O entrelaçamento iminente desses personagens e de suas histórias, preconizado pelo roteiro, não o exime de sofrer por problemas substanciais, que tangem tanto a construção de personalidade dos personagens quanto a organização dos eventos em cena.



A princípio, o gênero da comédia noir oferece considerações sobre as identidades e subjetividades das figuras representadas. O humor adquire um valor de suspense, carregado de seriedade e das feições em preto e branco, apesar de aqui elas estarem convertidas em cores. Isso explica, em parte, a aparente ausência de emoção dos indivíduos na tela, que passam por situações insólitas e caricatas, mas com reações não usuais. O problema central, no entanto, não está na escolha estilística para contar a história, mas no gerenciamento confuso dessa encenação e de seus efeitos. Boris e sua face aparentemente rasa revelam, posteriormente, a dor contida de seu passado ativista; Dom, por sua vez, perdeu a filha e se divorciou de sua esposa, Fiona (Fiona Gordon), o que afetou consideravelmente o seu estilo de vida. Contudo, à medida que são feitas, essas revelações são rapidamente suspensas, roubando do espectador a oportunidade de amadurecer suas próprias percepções e leituras.


Diante da mise-èn-scene melodramática avulsa, é incorporado um humor que, apesar de ácido e pretensamente potente, não passa de uma abordagem rasa e caricata dos que participam da narrativa. Em uma das primeiras cenas, Dom está deitado na cama, ao lado de Kayoko, e começa a ter um pesadelo de quando fugia de algum lugar de bicicleta em seu passado revolucionário. Kayoko repete os gestos do colega, não apenas de forma repentina como também sem quaisquer fundamentos de personagem para tal. A rigor, tanto ela quanto Tim, eminentemente coadjuvantes, são pouco abordados na narrativa, e pouco sabemos das motivações que conduzem suas ações e os levam a embarcar com Boris na missão. Outras cenas do mesmo tipo, aliadas à rápida aparição do tema da traição no roteiro, me fazem questionar determinadas escolhas estéticas do filme, e nos levam à conclusão de que algumas nada acrescentam à narrativa, mas foram feitas com o puro intuito de encaixar o longa em um gênero e estilo extremamente específicos.


O caricatural, no entanto, não é regra absoluta no longa. De fato, é possível perceber um prestigioso domínio formal e técnico. A cinematografia, assinada por Pascale Marin, demonstra clara consciência formal do quadro, bem como da presença do campo e do extracampo na imagem. Um claro exemplo disso é o momento em que os protagonistas descobrem a existência de Dom: o carro, que a princípio usam para fugir, entra e sai do enquadramento da tela, em momentos sucessivos e com a súbita aparição gradual dos protagonistas, dando espaço também à imagem de Dom, por meio da troca de planos na montagem. A fotografia também é espetacular e cativa plenamente com o uso das cores e pela forma como consegue representar os espaços abertos nos quais o filme foi gravado, além dos mais fechados – estes claramente artificiais, tal qual um palco cênico, mas cuja artificialidade é transposta para o espectador de forma consciente.

Chegamos ao fim do filme com a ideia de que o seu grande problema é, de fato, narrativo, em que a essência se constrói – ou destrói – por meio de um roteiro gerenciado de forma confusa e com algumas lacunas em seus elementos essenciais. A caracterização de algumas personagens, como vimos, a suspensão de algumas questões sociais – a greve dos ônibus, a dos profissionais de saúde, o ativismo do protagonista – tornam-se plano de fundo e quase incoerentes com as premissas centrais do filme, encontrada sob certa dificuldade. Curiosamente, essa mesma dificuldade nos conduz a uma conclusão: fazendo uso de uma metáfora, o fato é que não se trata unicamente do bar, mas estão todos a todo momento à procura de uma estrela cadente – a detetive procura o marido, os protagonistas procuram uma saída para o seu problema etc. A rigor, talvez seja essa a premissa central do longa: nos colocar dentro da cena, à procura de algo que nem ao menos sabemos o que é e por qual razão buscar, por mais confuso e controverso que possa soar.

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