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Este texto se organiza a partir das atividades críticas dos últimos meses em torno da campanha de Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, para a temporada de premiações, como o Globo de Ouro e o Oscar. O foco inicial estará nos acontecimentos mais recentes, incluindo o boicote completo a Emilia Perez, os ataques pessoais a concorrentes brasileiros e a euforia em torno de um prêmio que, no fim das contas, não passa de um recorte americano.
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Pela primeira vez em sua história, o Brasil levou para casa uma estatueta do Oscar, um marco significativo para o cinema e a cultura do país, especialmente diante dos ataques sistemáticos que atravessaram sua trajetória, intensificados durante o governo Bolsonaro. No entanto, nas últimas semanas, o que se viu nas redes sociais foi um espetáculo de hostilidade desenfreada, onde as imagens dos filmes desapareceram, dando lugar a discursos inflamados pelo ódio.
Os ataques mais incisivos recaíram sobre Karla Sofía Gascón, um alvo fácil para a mídia e o público. Diferente de outras figuras de Hollywood envolvidas em polêmicas muito mais graves, ela não é um homem branco — e, por isso, não pode simplesmente publicar um pedido de desculpas no Instagram e seguir adiante. Foi empurrada para uma zona de cancelamento absoluto. Por mais que seus comentários no Twitter beirem o absurdo, não é difícil entender por que ela foi o principal alvo, enquanto outros nomes envolvidos na campanha do filme permaneceram intocados.
Já Demi Moore e Mikey Madison, embora estivessem na disputa, não tiveram suas atuações consideradas tão relevantes por parte da torcida organizada brasileira; seus filmes eram descritos como fúteis. A narrativa dominante era de que Ainda Estou Aqui possuía um impacto social maior, e, portanto, o prêmio deveria ter sido de Fernanda Torres, um ótimo argumento para usar na cinefilia em 2014.
Curiosamente, Cynthia Erivo escapou ilesa dos ataques da torcida organizada brasileira. Enquanto assistia à cerimônia em um bar, ouvi gritos de empolgação a cada aparição dela na transmissão. No fim das contas, entre quatro mulheres indicadas, conseguimos respeitar uma. Estamos evoluindo!
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Desde o momento em que comecei a acompanhar a repercussão de Emilia Perez, tanto em festivais quanto nas suas recepções mais negativas, notei uma curiosa padronização nas críticas. Jornalistas e figuras influentes do cinema pareciam convergir na mesma ideia: o filme era "ruim". Mas mais do que um consenso sobre sua suposta qualidade, havia uma uniformidade na argumentação, como se todos estivessem recorrendo aos mesmos termos para justificar que a obra representava um "ato horrível contra o cinema".
Mas como não se inquietar diante dessa harmonização de ideias, quase como uma cadeia própria de pensamento dentro da crítica? Será que a crítica está perdendo sua capacidade de teorizar e expandir a experiência cinematográfica? Ou será que é mais fácil listar defeitos do que se permitir prolongar o prazer das imagens?
"O filme não é realista."
"O realismo de Emilia Perez."
"O discurso de Emilia Perez."
Por que essa obsessão pela realidade quando falamos de arte? Por que a ficção precisa se justificar diante de um tribunal do realismo da crítica?
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Além disso, na crítica, surgiu o “crítico influencer”, uma espécie de blogueiro do cinema que expõe sua rotina de trabalho como forma de se conectar com o público. O que poderia ser uma estratégia interessante para tornar a linguagem crítica mais acessível — como fazem Philippe Leão e Arthur Tuoto — acabou se transformando em um modelo focado, acima de tudo, no engajamento. Os textos foram deixados de lado e, hoje, o que prevalece são rostos que buscam afirmar uma posição mais do que construir argumentos. Qual foi o último debate que a crítica gerou? Tivemos Daniel Aragão em Tiradentes e a imprensa não teorizou nada, apenas recortou os melhores momentos da briga por ENGAJAMENTO.
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Agora que a temporada do Oscar acabou, eu posso finalmente assistir aos filmes que eu gosto. Inclusive, achei um drive do Hong Sang Soo.
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A cinefilia brasileira é perigosa porque se constrói sobre uma barreira de coitadismo que, mais tarde, disfarçada de cordeiro, ataca. Durante toda a premiação, vimos esse ciclo se repetir: primeiro, criou-se uma narrativa de vingança familiar, como se a vitória de Fernanda Torres pudesse, por si só, resolver todos os problemas do nosso cinema. Graças à campanha bem articulada de Ainda Estou Aqui, muitos foram ao cinema para assistir a uma produção brasileira — um movimento importante, mas que também levanta questões sobre os reais motivos dessa mobilização. Afinal, estamos indo ao cinema para apreciar uma obra de arte ou apenas para fazer parte do debate? Até quando seremos reféns das premiações americanas em busca de validação? Ainda Estou Aqui pode ter sido o filme brasileiro mais comentado de 2024, mas tivemos obras melhores. No fim, o mesmo brasileiro que critica a ignorância cultural dos americanos muitas vezes reproduz esse mesmo comportamento dentro do seu próprio contexto.
Esse vitimismo da cinefilia brasileira rapidamente se transformou em ódio. Primeiro, Karla foi alvo de ataques por suas declarações, e logo depois foi a vez de Mikey Madison, cuja interpretação foi menosprezada com argumentos reducionistas sobre seu papel como stripper. Mais uma vez, a torcida organizada confundiu cinema com realidade, comparando sua atuação a garotas de programa brasileiras e a filmes pornográficos. Nada contra o pornô — essa não é a questão. O problema é usar o corpo e o rosto de uma atriz como munição para rebaixá-la. Isso é feio, galera.
Vocês não acham estranho que, após a cerimônia, Fernanda Torres tenha dito para darem amor à Mikey Madison? No fim, o clima de Copa terminou com mais um 7x1.
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Provavelmente, seremos indicados novamente no futuro. Nosso cinema está em uma fase de grande evolução, especialmente após a queda do bolsonarismo em 2022. No próximo tópico, vou escrever sobre como torcer por um filme brasileiro em território estrangeiro, especialmente nos Estados Unidos.
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Nosso cinema não é uma premiação.
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“A premiação organizada em torno dos filmes” é uma definição amplamente aceita para a torcida organizada. Mas nesse momento, quando o mundo está em ebulição de ódio e o planeta à beira de uma catástrofe de engajamento, tal concepção de selvageria ao cinema soa irresponsável, até narcisista. O que precisamos agora é de uma cinefilia que esteja em pleno contato com seu momento, com o fluxo de opiniões – que o acompanhe, que se mova e viaje com ele. Não importa o quão ardente e apaixonado seja nosso amor por esse meio, o mundo é maior e vastamente mais importante do que as premiações.
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