Por um western brasileiro: "Oeste Outra Vez" e suas outras veredas.
- Gabriel Lucas
- 10 de abr.
- 4 min de leitura

Conceber imagens é também fabular com elas. Se não for a imagem uma espécie de inscrição de autoria – ou mesmo de estilo –, poucos outros fenômenos o serão. Gosto de pensar na gesticulação dupla que é precipitada pela linguagem do cinema: se por um lado a palavra introduz uma composição discursiva que revela traços e dimensões geralmente narrativos em um filme, por outro, a imagem e o som provocam um estímulo único, uma sensorialidade estranha e, por conseguinte, desarticulam as certezas em uníssono com a unidade verbal. Sob esse olhar, diferentes fabulações tornam-se possíveis a partir do cinema, partindo, em determinadas instâncias, da elaboração de novos mundos que, entretanto, não se situam tão distantes do nosso.
O espaço geográfico e as delimitações sensíveis que compõem esse novo microcosmo revelam uma passagem de sujeitos por um lugar comum, diante de histórias e eventos insólitos que, com o transcorrer da trama, podem ser facilmente tomados como fluxos de sentimentos, desejos e vivências universais. Oeste Outra Vez (Dir. Érico Rassi) é uma amostra de como a paisagem mimetiza um palco de sucessivas desventuras dramáticas, sobretudo ao evocar, em pleno sertão de Goiás, os arquétipos dramáticos do western. A partir de duas notas centrais, tentarei evidenciar algumas noções que corroboram a identificação desse gênero no longa-metragem: na primeira, procuro demonstrar a contribuição da paisagem e do espaço para a construção de um escopo fílmico, de uma estética e de um estilo singulares na condição do western; já na segunda, ensaio um breve esclarecimento de como forma e conteúdo – marcados pela narratividade insólita – colaboram com as experiências sensíveis e dramáticas das personagens em meio ao seu deslocamento por um espaço árido e torpe.
I
“A forma de paisagem mais poderosa do primeiro cinema, o passeio fantasma, surgiu de um processo que durou séculos, no qual a natureza era transformada em imagens, culminando no conceito de pitoresco” (Gunning, p. 64, 2010)
Tom Gunning se refere, no trecho acima, a um certo poder adquirido durante os primeiros cinemas. A tecnologia do cinematógrafo não trouxe apenas uma possibilidade de representação dos espaços e das paisagens, mas uma oportunidade – e com ela um desejo latente – de penetrá-los. Em Oeste Outra Vez, Totó (Ângelo Antônio) e Durval (Babu Santana) experienciam uma rivalidade singular após serem abandonados pela mesma mulher pela qual se apaixonaram. Após um embate inicial, Totó decide contratar um velho pistoleiro – Jerominho (Rodger Rogério) para assassinar o seu rival, o que, no fim, desencadeia uma série de infortúnios: Totó descobre não apenas a incapacidade de Jerominho em realizar seu papel, como também percebe os efeitos trágicos de seu amor por Luiza (Tuanny Araújo). O longa torna-se, dentre outras coisas, uma representação da fuga do homem e do pistoleiro e de sua tentativa em encontrar sentido na decisão pelo assassinato de aluguel.

André Bazin escreveu um excelente ensaio no qual estuda a evolução do western e a sua reconfiguração num sentido estilístico e, certamente, temático. Em suas palavras:
“Eu diria facilmente dos westerns que me restam para evocar – a meu ver os melhores – que eles têm algo de ‘romanesco’. [...] sem deixar de lado os temas tradicionais, eles os enriquecem do interior pela originalidade dos personagens, por seu sabor psicológico, por alguma singularidade atraente que é precisamente a que esperamos do herói de romance.” (Bazin, p. 215, 1991)
Ora, Toto integra esse pensamento – e de maneira espetacular – na medida em que mobiliza uma discrição e, ao mesmo tempo, uma revelação de sua própria subjetividade a partir da mise-èn-scene. Enquanto atua como um personagem de poucas palavras, Ângelo Antônio opera uma performance singular na qual deixa transparecer o descontentamento, o desgosto e a dor sacramentados pelo desejo de possuir, novamente, a mulher amada. Me parece que as paisagens, nesse sentido, possuem um valor sepulcral: a natureza é torpe não porque é vazia de sentido, mas porque desvela o esgotamento desses sujeitos diante de uma realidade árdua, ou seja, a de seu próprio eu e de seu próprio desejo. A peripécia da fuga persiste pelo mato seco, pela estrada árida, pela noite escura e, ao mesmo tempo, pelas casas de tijolos e pelos casebres de madeira, de construção simples. O heroísmo do protagonista subverte o convencionalismo do termo e passamos a entendê-lo como a condição de um sujeito que é assombrado pelo próprio passado e por sua tênue introspecção.

II
Gostaria de destacar o valor e a riqueza de uma cinematografia exemplar no que diz respeito não apenas à representação do sertão de Goiás, como também dos sujeitos que compõem esse palco teatral do insólito. O som possui uma relação indissociável com essa formação do espaço geográfico, especialmente no que diz respeito aos ruídos produzidos pelos seres da natureza – pensemos, possivelmente, em uma sonoplastia da paisagem, ou uma paisagística do som, sem quaisquer intenções de estabelecer uma ordem de subordinação entre esses elementos. Ao ouvirmos o cantar das cigarras, o grilar da noite e o crepitar das fogueiras, nos debruçamos sobre a experiência evidenciada por Gunning, no sentido de estarmos gradativamente penetrando essa paisagem e, com ela, o seu conteúdo mais sensível, ou seja, os eventos narrados.
Ao final, o longa vale-se esplendidamente de histórias heróicas e, mesmo de maneira sutil, de histórias de amor. A rigor, aqui estas se reconfiguram sob narrativas de não-amor, ou de um amor ausente, ou mesmo de um pós-amor, levando à reflexão sobre o que de fato surge perante as latências provocadas e deixadas nesses sujeitos que, embriagados até os ossos pelo álcool e por seu próprio passado, buscam nas tradições e nos estilos do western – nos duelos, no assassinato a sangue frio, no explodir da pólvora – uma forma de reconciliar-se e de reconstruir o seu lugar em seu mundo perdido, em sua nova vereda.
Referências
GUNNING, T. Landscape and the fantasy of moving pictures: early cinema’s phantom rides. In: HARPER, G.; RAYNER, J. Cinema and landscape. Intellect: Bristol, UK/Chicago, USA, 2010)
BAZIN, A. Evolução do western. In: _________. O cinema: ensaios. Tradução: Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.
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