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Foto do escritorLuiza Neves

Pelo abraçar de nossas Criaturas


“Aprenda comigo, se não pelos meus preceitos, pelo menos pelo meu

exemplo, quão perigosa é a aquisição de conhecimento e quão mais feliz é

aquele homem que acredita que sua cidade natal é o mundo, do que aquele

que aspira a tornar-se maior que sua natureza permitirá.”

— Mary Shelley, Frankenstein (1818)


Mary Wollstonecraft defendia, desde o final do século XVIII, que mulheres,  sobretudo enquanto jovens, deveriam ser educadas de maneira equivalente a seus contemporâneos masculinos. Em seu mais famoso livro, Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792), a autora já debatia com plena convicção sobre as desvantagens que iriam advir de uma sociedade que apenas ensinasse suas meninas a servitude e a aparência. Sua filha, Mary Shelley, em uma das obras literárias mais famosas de todos os tempos [Frankenstein, 1818], agarrou-se aos ideais de sua progenitora e, dentre as diversas nuances e temas tratados em seu romance, ilustrou a dor e o perigo de um abandono. Mãe e filha foram ostracizadas na sociedade britânica de suas respectivas épocas.

 

Bella Baxter (Emma Stone), protagonista de Pobres Criaturas [Poor Things, dir. Yorgos Lanthimos], é criada – literalmente – em uma Londres da era Vitoriana. Após ter seu corpo encontrado às margens do rio pelo excêntrico cirurgião Godwin Baxter (Willem Dafoe), a moça é resgatada e submetida a um transplante; grávida ao morrer, o cérebro de Bella é substituído por aquele de seu bebê. Em um ambiente pomposo e mirabolante, seu desenvolvimento se dá de forma célere e curiosa. Diferentemente da forma como a criatura de Shelley é negada por seu criador, a casa dos Baxter é um recinto de carinho e excesso de zelo, premissa importante para que seus passos futuros possam ser alavancados.


Sem tentar justificar certas escolhas no seu uso da forma cinematográfica, sempre tendendo a um olhar inabitual, Lanthimos parece achar um tom quase infantilizado, que convida a audiência a se divertir com as venturas de Bella. Quando, por acidente, ela descobre a sensação de prazer sexual e, a partir daí, passa a buscá-lo de maneira deliberada, é possível maravilhar-se ao seu lado, como quem celebra pequenas conquistas de entes queridos. Em um ritmo que parece precoce para o que seria sua idade mental, a personagem passa a dialogar de forma mais assertiva com suas próprias vontades; imersa até então de maneira exclusiva na domesticidade, seu desejo de explorar o lado de lá das quatro paredes cresce exponencialmente. Godwin, no embate entre figura paterna amorosa e doutor protetor de seu experimento, concede-a certas liberdades, limitadas a seus termos. Acima de tudo, Bella Baxter ainda não seria considerada apta e educada para integrar a sociedade.



Prometida em casamento ao estudante Max McCandles (Ramy Youssef), que também é assistente de seu pai, nenhuma artimanha é demais para viabilizar que a jovem consiga fugir e embarcar numa viagem com o advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) – a princípio responsável por elaborar o contrato pré-nupcial do casal. O longa, inicialmente atendo-se ao preto e branco, de repente inicia um novo ato de cores exuberantes. A ideia transmitida pela imagem é clara: ao cruzar a porta de casa sozinha, Bella adquire um novo olhar sobre o mundo que a rodeia, tornando-se uma exploradora ávida, em busca de estancar uma sede voraz.


Ambos Victor Frankenstein e Godwin embuíram suas criações com a mesma maravilha pela vida, porém com resultados diametralmente opostos. Ao costurar sua criatura, o protagonista de Mary Shelley engendrou alguém que viria a ser considerado assustador, o suficiente para não conseguir criar laços e aproximações com ninguém que desejasse. A heroína do roteiro de Tony McNamara causa deslumbres com sua beleza, fator oportuno para a realização de seus mais variados ensejos. Emma Stone carrega a personagem de forma excepcional em cada uma de suas facetas, às quais o espectador é apresentado de maneira gradual, mas principalmente nas cenas de sexo, dotadas não somente de uma libido rara, como também de constrangimento, humor e novidade. Jamais usada enquanto arma, a graciosidade da jovem Baxter é apenas mais um agente adicionado ao seu carisma, dentro e fora da diegese. As articulações conjuntas do diretor e da atriz são, aqui, extraordinárias.



Wedderburn, apesar de tê-la levado consigo nessa empreitada, rapidamente busca a contenção novamente, munido de lamentos desonestos e armadilhas insuficientes. A partir daí, a obra parece fazer uso de uma didática cada vez mais explícita. Todavia, em discordância das afirmações que adotam Pobres Criaturas como algum tipo de manifesto feminista, não é aí que está sua maior falha. Enquanto objeto a ser politizado, o filme seria, de fato, raso – a ideia de individualização de problemas estruturais seria um bom lugar para se começar a tecer uma problemática. Não parece, entretanto, que esta seja a ideia central de Lanthimos, mais do que um estudo de uma personagem feminina em um arco quase odisseico. É em sua própria estrutura narrativa que nasce o desagrado, ao adentrar-se na resolução do mistério de quem era a moça que escolheu encerrar sua própria vida, antes de renascer como Bella Baxter.


A tensão do conflito instaurado é pouco efetiva, e a descoberta dos motivos por trás da tragédia da antiga Victoria Blessington faz com que o enredo caia em repetição. De certa forma, no arcabouço das indagações da protagonista acerca de sua própria identidade, não acrescenta em nada a minúcia de um drama passado. A jornada de Bella sustentaria um fim igualmente satisfatório e bem sucedido em seus recados. Para além do forte tema de seus encontros sexuais, ela já havia descoberto outras felicidades e mazelas que não eram permitidas em seu casulo, seja dançando espalhafatosamente em um salão ou esbarrando em vidas mais desafortunadas que a sua, uma realidade de dores que sabe não compreender. Sua ingenuidade não pedia outro momento de examinação. O desgaste desse caráter instrutivo gera um momento de tédio em meio ao espetáculo.



Não obstante, há que ser declarada como uma obra bem sucedida em sua proposta. Em sua essência, pode ser considerada um bildungsroman afetuoso e delirante. Histórias que se permitem ousar a partir de jornadas psicológicas conseguem, sim, carregar o que é político em suas entrelinhas. Mary Shelley jamais explicita quaisquer dizeres acerca de seus ideais, mas isso torna ainda mais forte o poder de sua escrita, tudo que há de intricado por trás de um enredo que, em sua superfície, aparenta tratar de um tema sobrenatural. Como Wollstonecraft e sua filha, Bella Baxter não se deixa deter por convenções que lhe são impostas. Diferentemente das duas, entretanto, a personagem fictícia não o faz por qualquer consciência de direitos, e seu charme reside numa personalidade que foi carinhosamente construída por seus realizadores.

 

Um cinema, em sua feitura, de amor e apreço tem, geralmente, mais virtude em conseguir transmitir mensagens fortes. O mais interessante em Pobres Criaturas é o entendimento de que, antes de tudo, o essencial é buscar o que parece genuíno a cada indivíduo. Vida real ou arte, só assim há a capacidade de ressoar em algo que resiste; o cortar de uma cabeça, o nascer de duas no lugar.

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