Ao voltar do trabalho, Suellen (Maeve Jinkings) questiona o filho sobre as produções flamadas que posta na internet, prezadas pelos gestos e cores imanentes da cultura queer e da comunidade LGBTQIA+, sobretudo indagando o que as pessoas fora do círculo familiar diriam a respeito dos vídeos caso os vissem. Tiquinho (Kauan Alvarenga), por outro lado, retruca com a simples pergunta: "Lá fora, mãe?". Calcado em discussões e diálogos como o citado, que vazam para imagem dotando-a de potências narrativas e estéticas, Pedágio é um exemplo de aproximação do espectador à realidade, um exercício de reflexão sobre identidade, classe e sexualidade em um país construído a partir do trabalho de supressão e desestabilização destes, assim como uma história sobre aspectos danosos presentes na relação parental, muitas vezes gerando cenários de solidão e disparidade afetiva.
Um dos grandes conceitos empregados pela filosofia pós-moderna consiste na compreensão de poder para Michel Foucault, especialmente quando este não é mais definido como uma forma-Estado, mas como um agente inerente às relações interpessoais, onde a figura da autoridade está presente dentro do próprio ambiente doméstico. Com isso em mente, o filme possui agentes que desempenham papéis autoritários para com o outro, seja pelo segmento social ou pela defesa do discurso próprio ao sistema vigente, limitando a circulação dos corpos e dos sentimentos. Suellen é uma cobradora de um dos pedágios da zona metropolitana da Baixada Santista, mas não deixa de desempenhar tal papel dentro de casa, uma vez que regula a expansão sexual e identitária do filho. A própria figura do "pedágio" parte desse lugar de objeto-reflexão, regendo a base fílmica. O pedágio surge como essa fronteira que vigia a circulação e permite a ultrapassagem através de aspectos monetários. Da mesma forma, os próprios signos visuais funcionam também como agentes reguladores, dialogando diretamente com a ideia chave expressa no controle de alguns sobre os outros. O hall do templo evangélico que oferece o curso da cura gay, por exemplo, é ornamentado com esculturas em madeira e pinturas que dispõem uma perspectiva colonial, seja através do busto de um soldado português ou pelas pinturas que imprimem um imaginário nacional único e determinante. Destarte, Markowicz defende uma compreensão social engendrada em fatores e regras pré-estabelecidas que regem nossas escolhas, impedindo as expressões identitárias de circularem livremente.
Por outro lado, a manifestação da sexualidade de Tiquinho está neste lugar de resistência ao filme, tomado por tons terrosos e acinzentados, bem como pelo discurso cristão, homofóbico, hipócrita. O rosa explode na presença do jovem, transformando a diegese, ainda que esta não necessariamente o receba de braços abertos. Tanto que o recurso dá as caras pela primeira vez durante o trajeto até a escola através do óculos rosa do garoto, quando treina as letras das músicas que pretende performar em seus vídeos, tornando o caminho saturado de fábricas e inabitável em um ambiente suportável, possível e convidativo para o imaginário. Afinal, trata-se de como este vê o mundo, a barreira que separa o olhar do objeto visado, uma escolha estilística indistinta da identidade da personagem, em perpétua expansão. A forma pode não aceitá-lo, mas não pode ignorar a sua presença. Nesse sentido, a realizadora opta por abordagens fotográficas e decisões artísticas capazes de comunicar que nem tudo, afinal, se encontra perdido.
Apesar de parecer tímido à primeira vista, os recursos estilísticos se destacam na ausência de figuras autoritárias, seja quando o menino recolhe-se ao banheiro ou ao quarto, espaços de circulação limitadas. Entretanto, o que antes era contraído se prova uma evolução gradativa em direção à inevitável presença. O poderio da mãe cede ao desabrochar em sentidos e efeitos particulares à figura de Tiquinho, libertando o filme dessa forma engessada, dando vazão à transmutação dos sentimentos e dos gestos. Isto é, as variadas tentativas de repressão de uma identidade carregada de vontades e desejos, se provam incapazes de contornar os traços subjetivos que definem o indivíduo. O efeito de consumação desta reflexão encontra sua maior potência na performance final, onde o corpo circula livremente no ambiente desejado: o palco. A câmera tenta compreendê-lo no quadro, mas falha porque as expressões por si só se mostram incontidas, libertas enfim de certas amarras, ainda que o grito da música de Dinah Washington exija a aprovação da mãe inconformada. No fundo, importa a súplica final pelo amor capital, pelo acolhimento necessário para que as coisas continuem.
Em seu segundo longa-metragem, Markowicz é cruel ao mesmo tempo que otimista. A escolha de suspender a trama no ápice das possibilidades convida o espectador a refletir o destino das personagens, a pôr em relação à narrativa o lugar que habitamos e o papel social que desempenhamos. Pedágio está inserido na rara camada de filmes que dizem qualquer coisa a respeito da vida, aqueles que temos muita dificuldade de ponderar sobre, pois é através da comoção que nos desestabilizam e esta, por sua vez, cede lugar ao verdadeiro engrandecimento emocional, viabilizando caminhos para compreensão de si e do mundo. A realizadora sabe da importância desse movimento de translação e utiliza-o de forma perspicaz e audaz, pois sabe que será somente no espectador que o filme se completa e continuará a proliferação do discurso. E a defesa é simples, apesar de aterradora: por que tendemos a destruir o que precisamos acolher?
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