“Parthenope”: Vênus nas Ruínas
- Felipe Duarte
- 8 de abr.
- 5 min de leitura

12 anos atrás, Paolo Sorrentino alçou o voo mais célebre de sua carreira com A Grande Beleza (2013). O realizador italiano, então, se debruçou sobre uma burguesia decadente, que ocultava angústias existenciais e escândalos domésticos através de festas opulentas em uma Roma que surgia deserta, quase assombrada. Com o auxílio do montador Cristiano Travaglioli, Sorrentino ali popularizou uma abordagem que até hoje define seu cinema: o da imagem que, primeiro, funciona como deslumbramento, depois como narrativa.
Essa primazia da impressão estética como norteador do enquadramento se comprovou particularmente útil no filme de 2013, que, afinal, carrega “Beleza” no próprio título. Mas, além do belo, ela serviu também para evidenciar as outras questões que assombram Paolo: o tempo (grande ameaça da beleza) e a morte (seu fim inescapável). Tanto esse tópicos quanto o estilo de montagem se repetem nas obras subsequentes do diretor, que os encontra sempre atrelados ao objeto maior de suas narrativas: a Itália.
O país, apresentado como um espaço idílico nos escombros de um grande império, é o cenário que inspira e comporta esses temas, e é a ele que Sorrentino retorna viciosamente, para reiniciar suas investigações sobre a beleza e a finitude. A cada nova empreitada, posiciona o sujeito investigador em outro corpo, outra perspectiva, e o arremessa ao solo italiano. Em seu mais recente filme, é a Beleza em si que faz a investigação.
Parthenope (2025) é o mais recente título do diretor, batizado em referência a muitas coisas: primeiro, à ninfa mitológica que, falhando seduzir Ulisses, morre nas costas do Mar Tirreno; segundo, à real cidade italiana que foi fundada no suposto local de falecimento da ninfa, hoje renomeada “Nápoles”; e, por último, à protagonista do filme, a femme fatale de Sorrentino.

A personagem nasce nas águas do mar onde morreu a ninfa, e, antes sequer de o bebê ser propriamente visto, o filme realiza uma elipse astuta, e faz surgir das águas Parthenope já aos 18 anos (Celleste Dalla Porta). Tal como Afrodite/Vênus, ela emerge adulta das espumas de água salgada, munida de toda a sagacidade e encanto necessários para ser a tal femme fatale de um diretor que, de tão esteriotipicamente italiano, não confia esse dever a nenhuma figura que não seja divina.
A mulher, no entanto, não é uma femme fatale por representar em si uma ameaça, mas pela inteligência com que se permite ser vista. Explico: Parthenope tem ciência constante de ser uma mulher bela e da maneira que o mundo a trata em razão disso, e ocupa sua posição na dinâmica do olhar não como vítima de outras perspectivas, mas com agência e ambição de ser vista, tal qual uma boa femme fatale. Mas as ambições de Parthenope não são atreladas a seu ego ou outros interesses escusos, e sim a um senso enorme de curiosidade. Ela opera sua condição como uma plataforma a partir da qual alcançar respostas para suas inquietações internas, que são muitas vezes apresentadas como genuinamente epistemológicas.
O longa-metragem, de fato, acompanha a carreira acadêmica da jovem, que avança no campo da antropologia por mais de uma década, impressionando seu mentor (Devoto Marotta) com a astúcia que outros homens enxergam somente como sedução. Mas são esses outros homens – e também mulheres – que, ao se encantarem com Parthenope, permitem a ela acesso às múltiplas facetas da Itália, e a convidam a mais um episódio de suas descobertas.
São esses episódios que revelam o mundo à mulher e ao diretor. Ela encontra refúgio e admiração na sua curta amizade com o escritor inglês John Cheever (Gary Oldman), assombro e fascínio com uma antiga atriz que esconde seu rosto pelas mazelas da idade (Isabella Ferrari), pobreza, violência e medo ao se permitir relacionar com um mafioso (Marlon Joubert) e , talvez, alguma clemência às suas inquietações no encontro erótico com o corrupto cardeal Tesorone (Peppe Lanzetta).
Parthenope conhece muitas facetas de Nápoles e da Itália em suas buscas inquietantes, mas nunca parece buscar o amor romântico. Pelo contrário, sua conexão emocional mais profunda vem condenada pelo caráter incestuoso da relação. Apaixonados, ela e o irmão Raimondo crescem dançando ao redor do perigo de consumar seu desejo, uma possibilidade que se encerra ainda na juventude de ambos, quando o rapaz comete sucídio.

Essa tragédia é também usada por Sorrentino como uma espécie de repelente emocional que permite a bela e sensual Parthenope ser uma criatura não só inquietante, mas ela mesma inquieta. Talvez por isso, a construção da imagem da “diva” (como o próprio filme afirma e reafirma) é, de alguma maneira, reconfortante. Em um momento em que o cinema americano hegemônico sofre e populariza as retóricas que esvaziam termos como “male gaze” e “representação”, o italiano cria uma personagem que tem sua beleza como caráter definidor, compreendendo que nada há de superficial em ser belo. A profundidade da Vênus, ao fim, está na sua capacidade de se inserir no mundo, e observá-lo por se permitir ser vista.
E é nesse mundo que Parthenope descobre o belo como uma forma de sobrevivência, em meio às ruínas de um país que não é mais o que foi e de uma vida de sensualidade sentenciada a se esvair. Esse saber é cristalizado quando encontra o adoentado filho de seu tutor, um jovem imenso feito de água e sal, talvez tão estonteante quanto si própria, mas pertencente a outra ordem estética. Em meio a cardeais opulentos, jovens sedutores e pretendentes ricos, talvez seja ele a única criatura que cativa Parthenope ao ponto de verbalizar: “Ele é lindo!”.
Ao fim das andanças, Parthenope surge mais velha (Stefania Sandrelli), não sob o sol dourado da antiga ilha, mas sob a luz branca de um gabinete cinzento. Ela, agora, é a professora de outras jovens mulheres, incorporando as características dos outros que revelaram a beleza que a definiu e assombrou. Seu rosto, no entanto, não é mais o mesmo, e o fantástico potencial de sedução se foi. Talvez, por isso, seja essa a versão da Vênus que não mais posa para o olhar dos outros, mas torna sua própria face em busca da câmera.
Sorrentino sentencia que o tempo que alcança a beleza da mulher não tira dela sua curiosidade, e exibe os últimos frames da personagem iluminados por uma luz azul neon, proveniente de uma celebração de um time de futebol que cruza a pacata de noite de Capri. Parthenope ri, e Parthenope conclui como um exercício de um realizador que, buscando um fenômeno maior do que si próprio, constrói uma personagem quase impossível, para que ela vá até onde ele não consegue. Na Itália de impressionantes ruínas, a Vênus mergulha e retorna ao diretor com suas descobertas: a grande beleza não é imortal, mas é imensa.
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