Os Fantasmas de "Serra das Almas"
- Montez
- há 5 dias
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“Pra onde a gente vai carrega os fantasmas com a gente”.
Essa frase, dita em um raro momento de descontração em Serra das Almas, novo filme de Lírio Ferreira, funciona como um ponto de inflexão em duas frentes distintas: tanto no desenvolvimento da narrativa — à qual retornaremos mais adiante — quanto na trajetória mais ampla do cinema pernambucano. Neste longa, os fantasmas invocados não se restringem aos conflitos dos personagens com seu passado, mas se projetam também sobre a própria paisagem sertaneja, que assume contornos atemporais, marcados pela estética recorrente de Ferreira: o sertão como território físico, mas também como dimensão subjetiva e simbólica. Desde os anos 1990, com filmes como Baile Perfumado (1996), também dirigido por Ferreira, o cinema pernambucano tem mobilizado um imaginário em que o espectro colonial, político e social perpassa as camadas do presente. Há, nesse gesto, um esforço de leitura do contemporâneo a partir de estruturas históricas que seguem operando.
A própria forma como Serra das Almas escolhe desvelar sua narrativa evidencia essa questão: partimos de um acontecimento já consumado, de um momento situado no presente, para então, gradualmente, sermos conduzidos aos eventos que desencadearam a cacofonia caótica que inaugura o filme. Ou seja, o espectador é inserido em uma história que oscila entre passado e presente, entre quem esses personagens foram e o que se tornaram. Nesse processo de descoberta, os personagens se veem confinados em uma casa localizada na cidade que dá nome ao filme, no interior de Pernambuco. Enquanto a jornalista Samantha (Julia Stockler) e sua estagiária (Pally Siqueira) permanecem trancadas em um dos cômodos, esta última ferida em meio ao tumulto inicial, os demais envolvidos também ocupam esse espaço de tensão e espera: os donos da casa (Jorge Neto e Mari Oliveira), dois criminosos (Ravel Andrade e David Santos), e um homem arrastado por acaso durante a fuga (Vertin Moura). Juntos, formam uma miríade de figuras que agem e reagem consoante o que se desenrola ao redor, em uma dinâmica marcada por desconfiança.
Como já se tornou evidente até aqui, o longa de Lírio Ferreira constrói um cenário onde as decisões passadas assombram continuamente os personagens. Há um tensionamento constante no espaço aberto em que estão confinados, um ambiente cercado por mata fechada, onde a única perspectiva de fuga remete a um buraco escavado sete palmos abaixo da terra. Nesse contexto, o que se destaca é a maneira como o cineasta trabalha a interpessoalidade: a relação entre os personagens vividos por Ravel Andrade e David Santos oscila entre um humor cúmplice e uma violência crescente, que se intensifica à medida que o isolamento se impõe como condição inevitável de sobrevivência. Em paralelo, o personagem interpretado por Vertin Moura vai se revelando aos poucos, culminando em uma revelação nos momentos finais. Essa virada emerge como uma cartada derradeira, em que o derramamento de sangue é irremissível.

Ora, ainda que o filme pareça transitar por gêneros como o western e, em certa medida, pelo drama político, ele se parece, sobretudo, com uma alegoria da masculinidade. Todos os homens em cena se agarram a seus papéis masculinos, reiterando discursos sobre violência e sobre as mulheres, enquanto os raros momentos de vulnerabilidade aparecem menos como brechas de afeto e mais como dispositivos de autoafirmação, instrumentos de controle na construção de uma narrativa sobre si. Quando o personagem de Ravel Andrade chora diante da câmera de Samantha, o gesto não nasce apenas do medo do que está por vir, mas de uma raiva contida, de um orgulho ferido. Já o enlouquecimento do personagem de David Santos, revela-se como a expressão de uma pulsão orientada pela violência e pela morte. É justamente aqui que se amarram as ideias que abriram este texto: ao empregar o verbo “parecer” duas vezes no início desse parágrafo, posiciono o filme como um exercício que se insinua nas imagens, mas que evita o aprofundamento. Não se trata de ausência de discurso, mas de um projeto estético que opera no campo arquetípico.
Serra das Almas entende-se como um projeto que funciona como um grande arquétipo de imagens do cinema pernambucano desde a retomada. Essa ideia não configura, necessariamente, um desgaste; ao contrário, pode ser lida como um gesto de insistência: um retorno deliberado a imagens e estruturas narrativas que funcionam como marcas de um cinema que buscou se afirmar tanto pela estética quanto pela política. Não se trata de uma simples mimese de fórmulas já consagradas, mas de um cinema que revisita seus fantasmas. Esse movimento não esvazia as produções, mas talvez as desestabilize no campo da expectativa. O que se espera de um filme “do Recife” ou “do sertão” quando esses lugares já foram tão eficientemente codificados por um cinema anterior? A resposta parece não estar na superação, mas na variação ou numa ideia de reverberação, instigando não pela novidade, mas por enxergar nos espectros alguma possibilidade.
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