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"Onda Nova": a arqueologia do prazer na Boca do Lixo

Foto: Divulgação/ Vitrine Filmes
Foto: Divulgação/ Vitrine Filmes
II - Em consequência, decido pela não liberação do filme "ONDA NOVA", com respaldo no artigo 153, 5 § 8° in fine, da Constituição Federal, artigo 1° c/c o 7° do Decreto-lei n° 1.077/70, artigo 3°, na parte específica da contrariedade aos bons costumes e ao decoro público, da Lei n° 5.536/68, e artigo 9° do Decreto n° 78.992/76. tendo em vista que a película referenciada apresenta temática contrária à moral e aos bons costumes, bem como situações cênicas enfocando o uso de substâncias entorpecentes.”

Produção da Boca do Lixo, nome dado ao polo de cinema em São Paulo cujas produções de baixo orçamento traziam rápido retorno, Onda Nova (1983, dir. José Antônio Garcia e Ícaro Martins) foi interditado integralmente após sua primeira exibição na Mostra Internacional de São Paulo. O trecho que abre esse texto é retirado diretamente do parecer de censura e ilustra bem o claustrofóbico cerceamento ao cinema durante a Ditadura Militar no Brasil. Depois de mais de quatro décadas de sua interdição, Onda Nova retorna às telas em uma distribuição realizada pela parceria entre Vitrine Filmes e Tanto Filmes. Na trama, a jornada lisérgica das integrantes de um time feminino, Gayvotas Futebol Clube, abre caminho para dilemas que envolvem desejo, sexualidade e os desafios de mandar a bola para a frente, dentro e fora do campo. 


É dentro do campo que os corpos passeiam livremente, com sensualidade e brincadeira, fazendo do próprio ato de existir um jogo de vivências. Ora, se a censora Solange Hernandes, responsável pelo parecer acima, encontra uma temática contrária à moral e aos bons costumes é justamente porque esses corpos, ao se moverem com liberdade, ousam escapar das amarras do controle normativo – este, no filme, convertido em objeto de zombaria. A inquietação da censura diante do que vê é a constatação do desejo por uma sociedade que não encontra na representação imagética legitimação para seus prazeres. Onda Nova surge, então, como um veículo de liberdade e insubmissão. É “onda” porque se movimenta, se agita, se eleva; é “nova” porque rompe com os enquadramentos tradicionais de existência e identidade. O campo, então, não é apenas um espaço físico onde o Gayvotas levanta sua bola: é, sobretudo, um espaço onde se escancara um desafio frontal à lógica repressiva que imperava no passado e que, nos últimos anos, tentou se instalar novamente.


Mas se o filme é fora de campo, é, também, por conta da abordagem cênica proposta por Garcia e Martins. As cores que surgem na tela conferem e constroem um universo específico para que esses personagens transitem. Em outras palavras, eles existem em uma São Paulo real, mas vista através de lentes que transformam tudo em diversão. A câmera e a montagem, portanto, agem como ferramentas de linguagem que permitem irreverência, tesão e, ao mesmo tempo, flertam com uma ideia de maturidade. Esta última, por sua vez, não surge como um possível sucumbimento dos personagens a uma moral censória; ela emerge das transformações próprias de uma fase da vida, como parte do processo de crescer sem, necessariamente, perder a liberdade. Nem tudo é consequência. Às vezes, tudo é pura causa.


Foto: Divulgação/ Vitrine Filmes
Foto: Divulgação/ Vitrine Filmes

Em suas inúmeras – e bem sacadas – referências, que vão de filmes como As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (1972), de Rainer Werner Fassbinder, a diretores como Ingmar Bergman e Walter Hugo Khouri, o filme constrói a miscelânea de sua iconicidade, seduzindo o espectador justamente por não subestimá-lo com longas explicações sobre suas piadas ou bruscas interrupções. Aqui, tudo que deve ser, é. Na trilha sonora, que conta com grandes nomes da música popular brasileira, como Rita Lee (com a música Cor de Rosa Choque, também censurada por Solange Hernandes), Tim Maia, Gilberto Gil e Gal Costa, além de canções originais com ar chiclete, o longa tece a malha da resistência até mesmo na diegese dos discos de vinil que aparecem de relance, no canto dos quadros, e os gritos de Nina Hagen na épica Natürtrane carregam uma das cenas finais do longa com a certeza do que é o irreversível. 


Onda Nova é a morte de um Pai que não retorna, e não busca, em seus 102 minutos, copiar fórmulas ou enamorar-se de um ritmo vicioso já estabelecido. As drogas, o sexo e a pulsão que move os corpos não é mímese, mas uma contra-ascese. Na odisseia do “tornar-se adulto”, é preciso destruir muralhas, abandonar Circes em ilhas e defrontar-se com a dura realidade do ato de voltar para casa somente com o coração pendente nas mãos. A partir de um ponto sem retorno é que o filme crava suas unhas esmaltadas na realidade: não busca travar uma elegia ao amor ou a batalha entre jovens espíritos ardentes pelo respeito dos mais velhos, mas sim a destruição de um ideal de maioridade por uma irreverência que está longe do cinismo. 


Pela cidade luminosa, o conversível roxo torna-se a carruagem dos enfant terrible na noite paulistana, onde uma corrida de táxi com Caetano Veloso pelo bairro da Liberdade vira um espetáculo voyeur; uma brincadeira com uma arma pode descambar para a tragédia e o jogo final contra a Seleção Italiana ameaça uma sutil virada de placar. Onda Nova é gauche, mas acima de tudo, ardente, e desde a cena de abertura, em que os créditos são pichados em panos estendidos e um jogo de futebol brinca com a inversão dos papéis de gênero, questiona a “moral e os bons costumes” de um conservadorismo que, se tivesse gozado mais, não cortaria tanta brisa. Sua restauração e retorno às salas de cinema no momento atual evoca uma espécie de arqueologia do prazer: reencontrar, depois de tempos sombrios, a celebração do corpo transviado em seus vícios e virtudes. O barato é o novo, e o filme é como um disco perdido na estante que, depois de 41 anos e de muita poeira sacudida, soa ainda melhor. 


Texto escrito em colaboração com João Matheus Marques, editor-chefe da Revista Guilhotina.

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