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Foto do escritorArthur de Barros Campos

Observações sobre a cena dos fogos de artifício em "Um Tiro na Noite"

Foto: The Criterion Collection

O sino toca anunciando o começo do fim. Jack Terry (John Travolta) corre, atrapalhado e com medo nas veias, em meio aos soldados de uma apresentação do Dia da Independência Americana,  enquanto as luzes dos fogos de artifício iluminam a ele e a cena, com as cores da bandeira dos EUA. A música potencializa o suspense junto à câmera lenta. Jack alcança um portão e irrompe pela escadaria, finalmente avistando o assassino em cima de Sally (Nancy Allen). A ansiedade chega ao ápice: planos mostrando o assassinato em ocorrência e a face de Jack crescendo sobre a bandeira americana se alternam. 


A música chega em seu clímax, Jack mata o assassino. Em seu rosto, ódio e satisfação.


O assassino cai, a música é interrompida pelo barulho dos fogos. Sally está morta.


O filme se lembra do amor, e a música retorna, agora em tom de romance trágico. O rosto de Sally permanece no centro do frame por alguns segundos, as lágrimas escorrendo por seu rosto falecido. Jack respira e chora, entendendo que chegou tarde demais – o inevitável ocorreu. O ódio vira tristeza, a satisfação se torna decepção.


Ele a toma nos braços, e a câmera faz um movimento circular em volta deles, em contra plongée, observando-os junto aos fogos de artifício no fundo. A música continua, e o amor toma conta de tudo; o amor que existiu por momentos antes, que foi tão pungente, tornou-se morto.


Corta.


A câmera está no alto, descendo por  um horizonte frio, enquanto a neve cai e os barcos atracados são observados ao fundo. A melancolia toma conta do ar, ao passo que a música nos traz a tristeza do coração de Jack. Ele, sentado, coberto de neve, com o olhar perdido, imóvel, escuta mais uma vez a voz de Sally: “Olá, Jack. Pode me ouvir? Sabe, como eu estava falando antes, sobre ir para Nova Iorque e tal, a gente podia ver uns shows, tipo ‘Sugar Babies’ e tal. E eu conheço esse hotel ótimo…”.


Foto: The Criterion Collection

Essa cena contém tudo o que De Palma é. É o trabalho máximo de suas referências hitchcockianas na criação do suspense. É a cena em que ele libera toda a emoção que o filme guardava numa explosão: todos os sonhos para o futuro são excluídos pelo poder da narrativa.


Toda a construção audiovisual dessa cena demonstra as melhores características que De Palma tinha à época: a criação do suspense a partir do exagero fantástico. Dois elementos são cruciais para o desenrolar dessa cena e seu efeito dramático: a câmera e o palco sonoro.


  1. A câmera, por sua vez, acompanhando o passo a passo de Jack. Ela está sempre próxima do personagem e nunca o perde do olhar, nunca se distrai e muito menos revela ou tenta observar o objetivo do protagonista, e, com a velocidade reduzida na cena, essa aproximação com o personagem é ainda maior. O alongamento da metragem da cena nos coloca ainda mais ansiosos por chegar até o topo da escadaria. Cada passo de Jack se torna mais pesado do que o anterior, fazendo a cena durar uma eternidade.

  2. Quanto ao palco sonoro, a partir do momento que o sino bate, todo e qualquer som é perdido e substituído pela música de tom heroico de Pino Donaggio, compositor da trilha sonora. Os gritos e suspiros de desespero são esquecidos a fim de, ao mesmo tempo, transformar Jack em uma figura de esperança heróica, nos deslocar de qualquer outra distração e focarmos apenas no movimento de Jack, ampliando a ansiedade e colocando o protagonista em uma posição de insegurança. A música não para até que a câmera (e Jack) consiga encontrar Sally no chão, já morta. É no momento de revelação que toda aquela adrenalina cessa, que Jack, junto a nós, se acalma ao ver que o inevitável já ocorreu. O som dos fogos pode ser ouvido novamente, tranquilizador e funerário, que nos coloca de volta ao chão, depois de alçar um voo de expectativas para o clímax da cena, selando a vida de Sally no filme.


Toda essa sequência é bombardeada pelas cores da bandeira americana. Esse é o elemento que clareia a escada e mostra o caminho da falsa esperança. Quando finalmente Jack mata o assassino, a bandeira é mostrada ao fundo; o momento de triunfo, de grande heroísmo, mas que, logo em seguida, é substituído pela desilusão dessa ideia positivista que é tão construída sobre os Estados Unidos, compondo, assim, uma certa violação do sagrado dessa figura intocável que é a bandeira e a nação norte-americana, mostrando-nos que se trata apenas de uma figura de decadência humanista. 


E ao fim disso tudo, segue a demonstração do divino em tela: Jack e Sally, rodeados pelos fogos, nesse movimento circular que os envolve e transmite o épico na simples ação de carregar nos braços alguém que, tão jovem, iria ser seu amor, e se vai. Momento que, inspirado em Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock, é uma oposição ao filme de 1958, que, nesse momento, construía o enigma na figura da mulher que, naquele instante, havia reabastecido o protagonista de Um Corpo que Cai, Scottie, com o amor pela mulher que já havia partido, mas que, em sua memória, o fantasma permanecia como uma obsessão. Aqui, é o fim desse amor, é a partitura desse sentimento que nunca houve possibilidade de futuro.

Foto: Reprodução

Ainda em comparação a Um Corpo que Cai, a oposição de De Palma permanece ao se utilizar de técnicas mais frontais ao público, tornando evidente a manipulação dos elementos técnicos na criação do suspense, em contraponto à explicação narrativa de Hitchcock ao colocar o protagonista em enfrentamento direto com seu trauma de altura. O que, de certa forma, coloca a montagem de Um Tiro na Noite como esse impedimento narrativo, agindo contra a vontade e necessidade de Jack naquele momento. É como se a paixão do próprio De Palma por seu ídolo, tivesse que representar uma ruptura, tanto narrativa (a diferença das cenas do beijo), quanto formal (a diferença do uso da velocidade e da trilha à explicação narrativa).


E, tudo isso, é parte da composição que constitui, em De Palma, esse esplendor cênico que é colocar, no uso dos exageros e da manipulação muito evidente das imagens, um tom fantástico a seus filmes que transforma toda tensão e suspense em algo mágico e muito melodramático, revelando um potencial de fantasia que já era imposto nas obras de Hitchcock, mas que, aqui, são levadas ao seu extremo.


Na cena seguinte, Jack entrega para o diretor do filme B em que está trabalhando a fita que contém o grito final de Sally, o último momento de vida registrado daquela mulher. É, ao mesmo tempo, a eternização da vida na película, como também o entendimento de que a vida humana é instrumento do capital, até seu último suspiro, virando um mero grito em um filme de terror. Um Tiro na Noite, principalmente nesse final, tem a tendência em entender o cinema como uma arte pós-morte, que eterniza na película, e no áudio, vidas que tem um ponto final na realidade, mas sempre estarão aprisionadas e refletidas nas imagens. 


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