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Foto do escritorFelipe Duarte

Janela de Cinema 2023 | O temor e o ridículo: as duas vias de "A Estrada Perdida"


A iminência do perigo é um dos principais motores de David Lynch. Há uma tensão constante na maneira como ele encena, nos momentos de silêncio e de som, na maneira como a câmera cai em vertigem nas marcas de expressão de seus atores. Mesmo em trechos aparentemente pacatos, um espectador qualquer é acometido pela ansiedade, já que o tal perigo lynchiano não obedece lógica ou se permite ser desvendado, é quase amorfo.  Consequentemente, não conseguindo desvendar quando e o que temer, é mais fácil temer tudo, o tempo todo. 


De maneira muito menos lapidada, essa era a ideia que estava na minha cabeça durante a primeira meia hora da sessão de A Estrada Perdida, que encerrou o XIV Janela Internacional de Cinema do Recife. O filme abre com um longo take de faróis amarelados iluminando alguns palmos de asfalto, enquanto um carro dirige noite adentro, vendo somente escuridão à sua frente. Mais adiante, desdobra-se a história de Fred e Renée (Bill Pullman com cara de constipado e Patricia Arquette usando salto alto pra pegar o correio), casal que reside em uma casa obscura mais parecida com um exercício cubista, em uma das colinas de Los Angeles.


Fred é um saxofonista e suspeita da infidelidade de Renée, que existe no cotidiano da relação como uma espécie de esposa-troféu. Tal suspeita o atormenta, com um misto de paranoia e culpa. Em certo momento, esse tormento se apresenta na figura de um homem misterioso e caricato, uma espécie de espectro que incita seus piores instintos. Mas, para além dessa figura bizarra, a própria forma do filme provoca essa inquietude – no protagonista e na audiência.



O jogo de luz e sombra presente no take inicial dos faróis na estrada é expandido e explorado constantemente na primeira parte do longa, com corredores domésticos que são portais sombrios e luzes difusas que mal iluminam o rosto dos personagens. Trocando espaços liminares pela escuridão à espreita, o perigo lynchiano iminente da vez é o medo de si próprio, quando despidos de nossas virtudes e confrontados com o resto. 


Eu estava tenso. Eram quase 22h da noite de um domingo, e a iluminação, a caracterização e o uso da trilha sonora eram tão absurdos que estavam quase me transformando em um covarde. Mas aí algo aconteceu. Algo muito chocante aconteceu, enquanto eu tentava memorizar alguma frase marcante que pudesse me servir como título para esse texto: alguém riu. Uma risada cheia e rasgada, quase uma gargalhada de boteco, ecoando três fileiras atrás da minha.


Virei e descobri que o responsável pela gaitada era, curiosamente, um cara que eu tinha conhecido duas noites atrás, na entrada de um bar. Na ocasião, conversamos sobre sets de filmagem e os professores do curso de Cinema da UFPE. Já na sessão, a risada dele despontou também como um elemento absurdo – afinal, qualquer um que gargalhe diante do terror psicológico de Lynch deve muito bem ser um de seus personagens.


Mas A Estrada Perdida era também tortuosa e imprevisível. Conforme o longa avançava, aprofundando seus nós psicológicos, alterando seu jogo de luzes e transferindo momentaneamente seu protagonismo para o jovem mecânico Pete Dayton, a risada do meu colega de birita fazia mais sentido. E não ecoou sozinha.



Progressivamente, a plateia (eu incluso) se permitiu rir de forma cada vez mais livre quando exposta ao absurdo do filme. A cena em que o personagem Dick Laurent, um senhor meio gangster, esmurra um motorista barbeiro, recitando os dados de acidentes de trânsito em Los Angeles, é ouro cômico. Relembrando desses momentos, duvido muito que os espectadores se disponibilizariam ao humor inerente ao absurdo se não pelo nobre gaiato que desbravou primeiro esse caminho da Estrada.


A rota, no entanto, não era interminável. Lentamente, conforme se aproxima do ato final, o longa volta a brincar com um jogo duro de luz e sombras, enquanto retorna o protagonismo ao saxofonista Fred e reintroduz o personagem do homem espectral. Mais uma vez, há peso e tensão no ar, e o humor que aflora com a passagem do menino Pete pelo filme é deixado de lado, talvez o grande indicador que ajude a discernir a realidade onerosa do devaneio alucinante.



Ao fim de tudo, é Fred quem embarca de vez na escuridão, cometendo atos irremediáveis em razão de suas miragens paranóicas. O que Lynch propõe em A Estrada Perdida é observar como o mundo desse homem colapsa, interna e externamente, para que ele consolide seu caminho assassino. Mas, no meio desta trilha, há sinais deixados pelo diretor, indicando que o macabro tem dentro de si algo bem-humorado, engraçado mesmo, e que talvez por isso seja tão perturbador. É possível passar desavisado por esses sinais, quando não se está atento a procurá-los. Por alguma sorte, alguém três fileiras atrás riu e iluminou as curvas da história na minha frente. Valeu, cara.

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