Os meninos e meninas estão sentados na praia. Logo onde os coqueiros viram areia, olham para o horizonte escuro da noite, ouvindo o som das quebras do mar onde passam os dias correndo e sonhando. São vidas diferentes crescendo juntas, se agarrando ao que talvez sejam os últimos momentos possíveis de inocência juvenil. Um dos jovens confessa aos amigos, quase que sussurrando para si mesmo: “Será que um dia eu vou sair daqui?”. Para alguns deles, o questionamento surge como uma esperança, para outros, sugere um temor. O mais provável é que, sem nem perceberem, eles sintam ambos ao mesmo tempo.
Esse sentimento misto se faz presente nessa e em quase todas as cenas de Sem Coração, de Tião e Nara Normande. O longa é situado em Guaxuma, litoral ao norte de Maceió, durante o verão de 96, acompanhando a adolescência desses jovens, muitas vezes pelas perspectiva de Tamara, alter-ego semi-biográfico de Normande. De classe e cor que a distingue de seus amigos, a jovem oscila entre traquinagens juvenis e contemplações inquietas, absorvendo o último verão antes de se mudar para Brasília.
Das outras perspectivas que compõem o filme (e aqui deixo um elogio a Alaylson Emanuel por uma interpretação muito potente como Galego), a diametralmente mais oposta a de Tamara é Duda, a “sem coração”. Com uma cicatriz de operação cardíaca, a personagem-título é uma menina rejeitada pelos outros jovens, cujo maior elo emocional é com o pai, que garante a subsistência dos dois através da pesca. Se o silêncio de Tamara busca absorver os seus arredores para melhor compreender o que vai deixar para trás, Duda traga mundo ao seu redor com a resignação de uma vida que não ousa desejar nada além do que já conhece.
Essa distinção notória, no entanto, é parte do fascínio que se desenha entre as duas, quando encontram uma a outra lançando seus olhares pesados sobre o mesmo mundo. Por que Sem Coração é, acima de tudo, um filme sobre um mundo em si, ou pelo menos uma possibilidade efêmera de que pode ser nosso mundo comum. Pela câmera do filme, Guaxuma se manifesta como uma fronteira entre a realidade e o sonho, em quadros onde a fotografia tudo enxerga emanando luz própria, com personagens que existem para articular as possibilidades fronteiriças. A imagem da baleia encalhada talvez seja a síntese dessas possibilidades: prevista nos sonhos, um convite ardente para aprofundar os desejos, e um gigante atestado do fim iminente das coisas, quando encontrada na vida real.
A juventude em Guaxuma parece infinitamente maior do que a minutagem do filme conseguiria conter, sem que haja crianças e histórias suficientes que a mapeiem. Mas é nesses fragmentos, de beijos escondidos, aventuras incautas e de desejos pulsantes que reside uma nostalgia insuperável. Com a imagem de Duda voando entre os coqueiros sob a luz do sol, Sem Coração se delicia concluindo que podemos deixar os lugares onde passamos nossas vidas, mas que eles mesmos jamais nos deixam.
Esta crítica faz parte da cobertura do XIV Janela Internacional de Cinema de Recife.
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