Ainda que esse seja um texto voltado efetivamente para o último filme de Almodóvar, O Quarto ao Lado (The Room Next Door, 2024), ao pensar sobre o melodrama contemporâneo é inevitável não caminhar para outros cineastas que partem de uma mesma abordagem, que aqui chamo de “arqueologia do melodrama”. De forma bastante sintética, esse papel de historiador melodramático vem numa frente de ressignificação e revitalização daquelas que ficaram postas como características essenciais do gênero. Em outros termos, se os melodramas clássicos vinham carregado de uma tonalidade forte em sua estética e mise-en-scène, o que testemunhamos na atualidade é um processo de comedimento do exagero, de forma alguma negando-o, mas permitindo que, a partir de uma contemporaneidade dos estilos, ele permaneça sendo reinventado dentro de uma nova chave emocional.
Christian Petzold, por exemplo, parte dos clássicos do cinema para construir suas obras, tornando-se uma espécie de Janus – um rosto que está virado tanto para o passado quanto para o presente. Em seu trabalho mais recente, Afire (2023), ele toma Viagem à Itália (1954, dir. Roberto Rossellini) para solidificar uma de suas narrativas; em Phoenix (2014), une Carta de uma Desconhecida (1948, dir. Max Ophüls) e Um Corpo que Cai (1958, dir. Alfred Hitchcock) para abordar a sociedade alemã durante a Segunda Guerra Mundial. Almodóvar, por sua vez, também inspira-se em outros melodramas para erguer suas narrativas, mesclando homenagem e revigor em sintonia. Seu mais recente longa-metragem, protagonizado por Tilda Swinton e Julianne Moore, parte do reencontro de duas amigas da juventude em um momento de fragilidade da primeira.
O componente do passado se mostra evidente na forma com a qual o cineasta trabalha a conversa entre ambas, inserindo seus característicos flashbacks, imbricando na imagem não apenas a base narrativa de Martha (Swinton), como também o sentimento de nostalgia melancólica que vai se desenhando. Ingrid (Moore) é uma escritora cuja ideia da morte lhe assusta, sendo uma personagem provocativa pela antítese da sua relação com Martha. Enquanto, para ela, lembrar-se da juventude vem com um senso de tempo passado, para sua amiga é uma forma de fincar seus pés na própria vivência. Estamos diante, então, de um filme cujo passado e o presente compartilham uma mesma temporalidade por meio dessas personagens. Esse se torna o ponto central da própria feitura fílmica de Almodóvar. Sua reverência aos grandes clássicos do cânone pode vir de forma direta — basta pensarmos em De Saltos Alto (1991), cuja relação de mãe e filha tem tintas bergmanianas de Sonata de Outono (1978, dir. Ingmar Bergman) — ou com uma referência por meio de menções como acontece em dois momentos de O Quarto ao Lado.
O primeiro deles, ainda na primeira metade, ocorre quando Martha e Ingrid vão ao cinema assistir a uma exibição de Viagem à Itália. Com o pôster de Ingrid Bergman ao fundo, as duas conversam sobre o diagnóstico da personagem de Swinton e como ela lidará com tal fato: o convite para que Moore se hospede em uma casa com ela e fique no quarto ao lado para o momento em que ela optar tirar a própria vida. À primeira vista, o uso de tal filme pode parecer uma mera homenagem, mas, dentro dessa arqueologia melodramática, torna-se emblemático. Em princípio, pela própria forma que ambos os filmes lidam com a antítese vida e morte. A finitude das coisas — seja do relacionamento, seja da própria vida — assusta a personagem de Bergman, assim como a de Moore no longa almodovariano. Quando, já próximo ao final do filme de Rossellini, Bergman se depara com um corpo engessado do período da erupção vesuviana na Pompeia, ela lida com a imagem da morte; é um momento de reflexão sobre fragilidade e inevitabilidade.
Contudo, apartada da diegese fílmica e dentro dessa teoria arqueológica, a menção é uma forma de evidenciar esse papel do historiador melodramático, nessa relação de buscar em um precursor um fio narrativo que o ajude a construir a teia emocional que antes foi posta com tamanha habilidade. Este parece, por sinal, um papel muito simples que muitos diretores tentam fazer, mas poucos entendem a dissemelhança entre revitalizar uma referência ou apenas a imitar. Caminhamos, então, para uma segunda alusão, essa bem mais rápida: O DVD de Carta de uma Desconhecida. Clássico melodrama do período preto e branco, o filme conta a história de Lisa (Joan Fontaine), que se apaixona por um pianista, mas nunca tem seu amor correspondido. Este é mais um longa cujo título, à superfície, surgindo no filme soa meramente como uma citação, mas ele está tão arraigado à teoria discutida nesse texto quanto o de Rossellini.
Seu caminho está, também, na chave da morte, mas não dentro da relação entre Moore e Swinton, e sim entre as duas personagens que a esta última representa em O Quarto ao Lado. Desde o início do longa-metragem, nos deparamos com a presença de uma personagem ausente: Michelle, filha de Martha. Tida como uma garota distante — e a cara da mãe — ela surge apenas nos últimos minutos do filme, após a morte de sua mãe. Se, no filme de Ophüls, a presença de Lisa pós-morte se dá através de uma carta, aqui Swinton está em cada objeto da casa, em todos os elementos da natureza que circunda o local onde ela passou seus últimos dias. A filha, que desconhecia as tantas camadas da mãe, parece reencontrá-la e finalmente conhecê-la naquelas horas que divide ao lado de Ingrid.
O que Almodóvar faz é uma imersão nas imagens, explorando sua relação com a narrativa, a cultura e a subjetividade dentro do contemporâneo. Esta arqueologia, então, revela que as imagens vão além de meras representações visuais; são, na verdade, construções que não apenas refletem o passado, mas também esculpem a própria essência do presente cinematográfico. Comedido, mas profundamente emocional; elegante, mas longe da esterilidade, O Quarto ao Lado é o olhar de Almodóvar para o passado e para o presente; é sua reflexão, também, sobre o futuro. A ideia de uma arqueologia do melodrama, então, se torna um caminho para entender não apenas o gênero em si — afinal, sua maleabilidade lhe proporciona uma renovação constante —, mas também as sociedades que o produzem e consomem.
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