top of page
Foto do escritorLeo Wanderley

O perpétuo passageiro em 30 anos de "Amores Expressos"

Foto: Divulgação

No característico ritmo intenso do cineasta Wong Kar-Wai, Amores Expressos (ing. Chungking Express), já consagrado filme cult, aos 30 anos de idade, ainda é um convite: em uma sociedade onde tudo é mercadoria, qual a validade do amor? A verdadeira ode aos amores passageiros não busca responder o questionamento que permeia todo o filme, mas é primoroso ao criar e quebrar significados de eternidade, singularmente no amor, em uma das mais sensíveis e otimistas obras do cineasta. 


A trama é episódica, e se divide em dois. Começamos com o policial 223 (vivido pelo jovem Takeshi Kaneshiro), que passa por um término enquanto insistentemente compra latas de abacaxi com uma mesma validade, o seu aniversário, traçando um limite para seu amor: caso a ex não retorne em 30 dias, estará tudo acabado. Paralelamente, conhecemos uma misteriosa mulher (Brigitte Lin), escondendo-se, no sentido literal, com roupas e acessórios, que logo seria o alvo deste amor sumário. A trama do policial e da bandida, entretanto, não se desenvolve dentro do clichê, visto que não há amor consumado ou muito menos proibido. 


Ainda nos primeiros poucos minutos, estes não tão pequenos detalhes, somados com a ambientação caótica em uma Hong Kong que parece apertada, começam a formar o tom do resto do longa, bem sintetizados em uma fala do policial: “Se fosse possível enlatar um momento, será que eles também teriam data de validade?”


Mas, logo ao começarmos a contemplar os acontecimentos, eles passam. A narrativa se transfere para um outro policial. Este não é relacionado ao primeiro, mas também passa por um fim de relacionamento. A Chungking Express, lanchonete de bairro, é o ponto focal da história, e onde ocorre esse encontro despercebido entre o primeiro protagonista e o que assume o restante do longa, o policial 663 (Tony Leung Chiu-Wai).

Foto: Divulgação

Os dois compartilham profissão, mas também a melancolia do amor perdido e, eventualmente, a inocência — ou esperança — do que está por vir. Agora, a história parte de um relacionamento passado, com uma aeromoça, e que também é alvo de insistência, talvez mais sintomática, ao ponto de falar sozinho com os objetos esquecidos pela amada. Os ursinhos de pelúcia não respondem.

Faye (interpretada pela atriz de mesmo nome, Faye Wong), atendente do Chungking Express, é o alvo da nova paixão e a caricatura do tédio moderno. Desesperançosa e desiludida, sonha constantemente com a Califórnia, ornado pelo tema sonoro do longa, California Dreamin, do conjunto The Mamas & the Papas. Mais um símbolo para insistência, a personagem toca repetidamente a canção, enquanto também almeja o amor, que ela prontamente provoca no colega 663.


A música é um marco usado em todo longa, com o sonho californiano dividindo espaço com a menos notável What a Diff’rence a Day Made, de Dinah Washington, marcando os romances episódicos, mas também alguns dos ícones de perpetuidade insistentemente trazidos pelo cineasta. Somos bombardeados com os temas dos respectivos romances e lugares, com a sutileza necessária para se tornarem, em partes, personagens por si só. Sempre utilizados em momentos presentes, com as pessoas em tela iniciando ou parando a música, os amores passageiros desesperados para uma eternidade se repetem, acompanhados da trilha.


São cerca de seis músicas em todo o filme, sendo duas delas interpretadas pela atriz Faye Wong. A escolha não é ao acaso. Com relativamente poucos temas musicais e uma voz familiar em segundo plano, tons vibrantes se intercalam com cores mais sensuais e relaxadas, nos levando a lugares familiares entre si e aos acontecimentos em tela. De olhos fechados, seria possível identificar onde estamos apenas pela música, mas, além disso, o tom da cena, inclusive pelas interrupções bruscas e entradas inusitadas da música.


As conexões, seja nos relacionamentos e rompimentos dos mesmos, na própria cidade, com os encontros ao acaso ou com as coincidências narrativas, que nos deixam pensando se haverá impacto narrativo em ambos os protagonistas serem policiais, por exemplo, são o grande fio condutor do longa. Propositalmente, esta análise só é possível postumamente – inclusive, em meu caso, após mais de uma visita ao longa –, que, mesmo filmado em apenas 23 dias, não transparece deficiências na edição. A sensação pode enganar, mas a intenção é exatamente a oposta.

Foto: Divulgação

Kar-Wai tem predileção por filmes que, a princípio, são parcialmente incompreendidos, por vezes incompreensíveis, com personagens familiares às dores comuns. Aliado a uma fotografia crua, em sua maior parte, mas com relevantes trechos pitorescos (muito semelhantes as pinceladas visuais de Ashes of Time, do mesmo cineasta, e filmado simultaneamente), a intenção é clara: um retrogosto familiar, porém incompleto de significado para o desavisado. 


De um ponto de vista que considera as três décadas de idade do filme, os amores expressos e as histórias interrompidas soam como uma memória, mas não tão distante. Talvez o ritmo acelerado, que também evoca esta sensação de passagem de tempo, aumente a percepção do filme como uma recordação, retalhada, porém rica em detalhes distorcidos pelo tempo. O ato de lembrar é central na obra, e tentar resgatar este princípio em um recorte temporal real nos faz pensar se algo realmente mudou neste tempo? Os anseios e atitudes retratados seriam diferentes? Consequência de um retrato bem palpável das personagens, se identificar com os acontecimentos é fácil, contribuindo para a atemporalidade do clássico. A nostalgia de algo não vivido é um sentimento curioso, nesse caso arquitetado minuciosamente. Considerando a memória como mote provocativo e proposital, a dicotomia entre passagem e permanência se assemelha com o funcionamento de nossas lembranças e, consequentemente, de como nos recordamos de nossas relações, seja ela romântica ou não. 


Esta empatia com alguns dos sentimentos mais complexos da existência humana, mesmo considerando as diferenças naturais à passagem de tempo, nos permite experienciar uma proximidade irreal com a trama, mesmo com o recorte temporal. Com uma roupagem comum à modernidade, as dúvidas e símbolos do amor estão ali, e os anseios são os mesmos — aliás, permanecem os mesmos, e há muito mais que 30 anos. 


Obsessão, melancolia, insistência e tédio são alguns dos sentimentos mais latentes dos quatro protagonistas com seus vícios modernos. Apesar do bom humor, principalmente comparado a outros extremos melancólicos do cineasta, ainda possui a assinatura de dor, apesar de frenética e brilhante. Com tanto a se dizer, sentir e transpirar em meros 103 minutos, o verdadeiro cabo de guerra entre encontros e passagens se consagrou, após 30 anos de lançamento, Amores Expressos como um clássico do romance e dos românticos. 


Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page