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Foto do escritorJoão Mauro Cursi

O modernismo peculiar de “São Paulo, Sociedade Anônima”

Foto: Reprodução

“São Paulo é um buquê

Buquês são flores mortas

Num lindo arranjo

Arranjo lindo feito pra você”.


São Paulo, Sociedade Anônima (1965, dir. Luiz Sérgio Person), que chegou à Netflix no último Dia do Cinema Brasileiro, 19 de junho, é um filme que se localiza historicamente numa situação muito peculiar do cinema brasileiro. Lançado em 1965, o longa não compõe exatamente nem a constelação de obras do Cinema Novo, nem do Cinema Marginal, movimentos brasileiros que caracterizam o nosso cinema moderno. Mesmo assim, o modernismo se exibe formalmente, com a câmera na rua e um pequeno grau de experimentalismo na montagem, e tematicamente, em uma autocrítica da classe média da época. Além disso, se os filmes do Cinema Marginal, ou mesmo Terra em Transe (1967, dir. Glauber Rocha) avançam na exposição das questões sociopolíticas do período, Luís Sérgio Person as concentra psicologicamente na figura de Carlos (Walmor Chagas), protagonista de São Paulo, S.A..


Em meados dos anos 60, o mundo conhecia as ruas de Paris através dos filmes de Godard, Truffaut, Varda e companhia. A liberdade que o cinema moderno descobria, filmando nas ruas e gravando som direto, se traduzia nos personagens da Nouvelle Vague que caminhavam livres pela Champs-Élysées. O Brasil, no entanto, não tem Paris, nossa metrópole é São Paulo e, em 1965, é uma São Paulo cuja sensação de liberdade é sufocada pelo trânsito e pelo governo militar recém instaurado. Ao caminhar pelas ruas cheias da metrópole brasileira, a liberdade dá lugar à claustrofobia, que sufoca com ajuda da fumaça dos automóveis. Em um claro aceno a Eisenstein, Person intercala planos de engrenagens aos planos das caminhadas de Carlos, expressando a dura forma com a qual o personagem se relaciona com o ambiente da metrópole e com os transeuntes.


É curioso como, apesar disso, a cidade ainda parece exercer alguma atração sobre Carlos. Na verdade, o filme atinge uma certa indiferença entre as cenas que expõem o sofrimento e alegria de do protagonista. A montagem evita uma construção dramática enquanto a não-linearidade narrativa iguala a dramaticidade dos planos e cenas, de forma que não há privilégio concedido para as cenas individualmente. Vemos a morte de Hilda (Ana Esmeralda), ex-amante de Carlos, na parte inicial do filme, sem nem sabermos quem ela é. Esse deslocamento narrativo da sua morte limita o envolvimento emocional, é mais uma cena colocada ao lado de muitas outras, cuja importância não é comunicada ao espectador. Por outro lado, vemos Carlos correndo na praia e cantando no carro em família — cenas em que ele parece genuinamente feliz, mas neutralizadas da mesma forma pela montagem.

Foto: Reprodução.

O ápice dessa desdramatização através da montagem é o casamento entre Carlos e Luciana (Eva Wilma), sendo quase todo elipsado e só o vemos representado em tela por fotos. Se a não-linearidade narrativa torna os planos indiferentes através da montagem, a substituição de planos por fotos elimina ainda mais a ação do filme e constitui uma rejeição ainda mais radical do drama, que no cinema é construído sobretudo por meio do movimento das imagens. Essa escolha estilística opera em contraste com a representação visual das ruas de São Paulo, cujo problema é movimento demais, mas atinge um resultado expressivo semelhante: pelo excesso ou pela ausência, o movimento da vida de Carlos se revela angustiante. Essa angústia, contudo, não é caracterizada por uma potente emoção romântica, mas pela indiferença emocional do protagonista.


Carlos é, portanto, avatar de contradição — contradição psicológica e contradição de classe. Se o personagem sofre com a imagem do maquinário que opera, também explora trabalhadores quando lhe convém. É importante lembrar que o cinema brasileiro dos anos 60 é realizado sobretudo por cineastas de classe média, que após um momento inicial do Cinema Novo, empreendem uma fase autocrítica do movimento em que a contradição entre a realidade e a ideologia da classe média são tema central. São Paulo, S.A. se insere nesse contexto, apesar da estética que se aproxima do vindouro Cinema Marginal e do deslocamento geográfico do Rio para SP. Desse cenário de contradição, o final não deixa dúvidas: na tentativa repentina de fugir, a carona que Carlos pega o leva de volta à Metrópole — todos os caminhos levam a São Paulo. Por meio da indiferença provocada pela montagem não-linear e pela liberdade que se faz ausente das ruas de São Paulo, Person entrega uma obra onde a vida da metrópole paulistana é levada à exaustão pelo seu movimento incessante, do qual não há fuga.

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