Em O Mal Não Existe, Ryusuke Hamaguchi cria um fascínio pelo meio ambiente e pela vida das pessoas na aldeia através de uma fotografia belíssima, que captura uma aura quase mística da natureza, e do slow cinema e dilatação temporal – uma beleza intrínseca a esses movimentos da floresta, que carregam uma força tanto ecológica quanto social, no modo com o qual move toda uma comunidade de pessoas, que têm aquele espaço como uma fonte de subsistência, e vidas intimamente conectadas ao cotidiano pacato e rural. Essa contemplação por todo o ambiente ganha um caráter extremamente humano: ao contemplarmos essas relações saudáveis entre o homem e o meio, o simples movimento de alguém partindo troncos ou enchendo um balde d’água em um rio se tornam revigorantes, lembrando a profundidade humana que Tsai Ming-liang alcança em seus filmes, através da maneira com a qual evidencia e ritualiza movimentos, partindo de uma apropriação realista na maneira como o diretor capta relações essencialmente simples entre personagens e espaços.
Mesmo diante de toda essa contemplação e fascínio, um mistério sutil nunca deixa de pairar durante o filme, como se algo estivesse prestes a ruir. Esse suspense é bem inserido desde a cena inicial, quando a câmera, em um leve movimento apontando para o céu, atravessa os espaços ao som de uma trilha que vai se tornando mais inquietante, como se estivesse ambientando a floresta de um filme de terror. Embora seja tudo muito belo, é como se, em qualquer instante, essa beleza pudesse sumir. A ameaça é logo revelada, e não poderia ser mais devastadora para aquela comunidade e para o meio ambiente: a construção de um glamping (espécie de cabana de hospedagem), que afetaria tanto a segurança ambiental do local quanto o modo de vida daqueles habitantes; ou seja, se trata de uma ameaça capitalista. A vida lenta é contraproducente em um estado onde é necessário o maior lucro no menor tempo. Após um longo debate entre moradores da vila e agentes da corporação, notamos como a empresa apenas finge se importar com as questões socioambientais do espaço que vão usufruir; mas, no final das contas, almejam somente o lucro, e as questões levantadas pela população pouco importam.
Depois disso, o filme toma a curiosa decisão de mudar o seu ponto de vista: vai de Takumi (Hitoshi Omika), o “faz tudo” da vila, para Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani), os agentes que apresentaram o projeto do glamping para os moradores da vila. Mesmo sendo uma decisão que pode soar um tanto quanto abrupta, quando somos postos nesse núcleo, a nova perspectiva choca com a anterior. Todo o ritmo dos acontecimentos se altera por conta dessa velocidade capitalista, e as paisagens naturais são substituídas pelo concretismo visual no qual aqueles personagens estão postos. Exemplo: em um corte seco – de um plano na vila para um na cidade grande – o contraste entre os ambientes é apresentado de maneira bem crua. A partir desses outros personagens, percebemos que estavam postos em uma reunião com a população local apenas para satisfazer interesses vazios da empresa, e como a busca por sucesso na sociedade capitalista acaba fazendo com que essas pessoas tenham que deixar de lado os seus próprios interesses em prol dos interesses do mercado. Essa ideia é demonstrada em uma longa cena de diálogo dentro de um carro, gravada quase em um único plano, demonstrando verdade no que os personagens dizem por não dramatizar seus planos e diálogos.
Enquanto esses personagens, juntamente com Takumi, passam a adentrar e também entender aquele microcosmo e a beleza na conveniência das pessoas com aqueles espaços, o suspense em torno da ameaça capitalista não sai do ar. A cena final é inegavelmente uma das coisas mais marcantes do filme, podendo parecer incompreensível, ou extremamente dúbia, mas parte de um conjunto de peças que foram levemente plantadas durante o todo o longa, desde a relação da menina com a natureza, os cervos, aos tiros; para além disso, a montagem não linear, juntamente com a estética extremamente azulada e nebulosa, passam uma impressão alegórica para todo esse segmento final, como se essas pequenas peças representassem algo que vai além de sua repercussão imediata, mas fossem uma representação simbólica acerca do caráter destrutivo do capitalismo nas esferas social, ambiental e humana.
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