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Foto do escritorMatheus Rocha

O luto, a culpa e o perdão em "This Much I Know to be True"

Nick Cave em This Much I Know to Be True. Foto: Divulgação/ Mubi

Tem mais do paraíso no inferno do que nos foi dito.


Essas são as palavras que ecoam no poema declamado pelo cantor Nick Cave, logo após comentar sobre o luto e a dor de ter perdido seu filho no documentário One More Time with Feeling (2016), realizado por Andrew Dominik. Arthur Cave, tendo apenas 15 anos, faleceu um ano antes do lançamento do filme que tinha como objetivo documentar a gravação do álbum Skeleton Tree, produção da banda The Bad Seeds - liderada tanto por Nick, enquanto vocalista, quanto por Warren Ellis, enquanto compositor. Apesar das letras e melodias das músicas já planejadas não terem mudado, a tragédia fez com que todas elas fossem interpretadas à luz da dor e do luto, num processo não só de catarse, mas também de cura.


Em uma passagem, o cantor comenta sobre o impacto que a perda teve nele sem ser capaz de entender como ou em que escala isso se deu. Nick explica que ele se sentia como um elástico — não importa o quanto ele siga sua vida, trabalhe, consiga se afastar da situação, em algum momento ele sempre será puxado de volta, numa força maior que ele, para a tragédia e para a memória do filho. E, como comenta Dominik por trás das câmeras, ele provavelmente nunca vai querer se afastar. São nesses momentos de conversas entre o diretor e o cantor, e nas falas de Susie Cave, mãe de Arthur, que o luto é ilustrado e tratado diretamente. Mesmo que Arthur seja mencionado apenas na segunda metade, durante o filme inteiro ele está ali, incorpóreo: nas imagens recortadas da casa dos Cave e nos desenhos de uma infância distante. Nas sequências de estúdio, trabalhando no álbum, Nick e Warren criam uma atmosfera quase etérea que nos dá certeza que aquela não é uma gravação comum. Nem poderia ser.


O domínio de iluminação e contraste é uma marca da filmografia de Andrew Dominik. Em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007), é possível sentir o medo, a paranóia e a angústia dos personagens apenas por como são apresentados — as sombras, o que elas ocultam e aquilo que é iluminado vão construindo não só interesse para o olhar, mas todo o clima do filme. Os flashes e holofotes moldam também Blonde (2022), com um trabalho técnico e artístico pouco visto fora dos sempre mencionados “filmes de arte”. Em One More Time with Feeling, as imagens acompanham a música de Nick Cave e Warren Ellis lado a lado, criando um visual umbrático, tão intrigante e extasiante quanto as melodias e letras de Skeleton Tree. A luz e sombra do filme — que é gravado todo em preto e branco — são personagens tão importantes quanto as pessoas em tela: elas mostram as possíveis saídas de uma escuridão que, agora, estará sempre presente na vida dos Cave.

Frame de One More Time With Feeling. Foto: Reprodução.
Frame de O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford. Foto: Reprodução.

Tem mais do paraíso no inferno do que nos foi dito.


O filme definitivamente encontra sucesso ao montar um perfil de Nick Cave como artista e como pessoa e, por consequência, foi bem sucedido também na recepção da crítica e do público. No entanto, não foi a única parceria dos Bad Seeds com Andrew Dominik, que já tinha trabalhado com Nick em Jesse James (2007) e, em 2022, trouxe Warren para compor a trilha sonora de Blonde, uma ficção sobre a vida de Marilyn Monroe estrelada por Ana de Armas. Foi uma surpresa quando, no mesmo ano em que lançava o filme fetichista e exploratório da imagem de Marilyn, Dominik estreou também This Much I Know to be True (2022). Esse, quase um documentário-irmão de One More Time, dessa vez acompanha Nick Cave e Warren Ellis novamente examinando sua discografia — e o lugar que a música e a arte têm em suas vidas pessoais.


This Much abre com uma sequência longa em que Nick revela estar, por conta do período de isolamento pós-Covid 19, muito mais próximo da arte em cerâmica que da música, explorando novas narrativas e formas de se expressar nos moldes e esculturas. É como se ele se permitisse ser mais do que aquilo com o qual o público está acostumado, e encontrar consolo em estar eternamente aprendendo e em mudança. Enquanto cerâmico, Cave apresenta sua próxima série de estatuetas, que conta a história do “Diabo”, mas que mais se assemelha a uma alegoria à sua própria vida. A última obra da sequência mostra o Diabo quase sem vida, jogado e esquecido, em seu último ato, implorando pelo perdão de uma criança. É fácil associar a figura da criança a Arthur e ao sentimento de culpa, mesmo que irrazoável, de um pai pela perda do filho, bem como à busca pela absolvição. “A paz virá com o tempo”, ele canta na primeira música do filme, registrada pelas lentes de Dominik, sem que seja explícito se ele já encontrou paz, ou se o cantor ainda anseia por ela.


Ao contrário do seu antecessor, o documentário quase não tem inserções de comentários, narrações e declamações de Nick Cave. Nesse quesito, ele é menos intrusivo e expõe menos a dor e as inquietudes do cantor. É como se o filme fosse um conselho caloroso depois de muita dúvida e dor, especialmente por conter algumas das respostas de Nick às perguntas e angústias de seus fãs no fórum Red Hand Files — onde qualquer um pode deixar questionamentos para o cantor. Muito do sentimento de encerramento e de consolo, portanto, é percebido principalmente nas extensas sequências musicais. A música, em si, é inquestionavelmente a protagonista do longa e carrega a emoção como tal. Para Nick, não há muito mais a ser falado, mas ainda há tanto a se cantar e a se ouvir.

Foto: Divulgação/ Mubi

Tem mais do paraíso no inferno do que nos foi dito.


Cabe refletir sobre as escolhas visuais de This Much em comparação não só com One More Time, mas principalmente com Blonde, já que os dois foram produzidos contemporaneamente e bebem das mesmas influências e experimentos imagéticos de Andrew Dominik. Sobretudo, é impressionante como muitas das decisões tomadas funcionam em um, mas não funcionam no outro. Para cada sequência musical com Nick Cave, vemos uma mudança ocasional no formato de tela (o aspect ratio) e o diretor brinca com os movimentos de câmera sempre em paralelo com a música, quase que imitando a sensação ondulante das melodias de Ellis. Em Blonde, essa mesma brincadeira também está presente, mas sem propósito algum, além de falhar em acrescentar algo à história contada — que, em muitos momentos, acaba sendo difícil de se discernir até mesmo qual é a finalidade daquela produção.


Apesar de não ser gravado em preto e branco como o documentário de 2016, This Much tem todo o brilhantismo dos contrastes nas cores saturadas e na iluminação sublime de seus personagens e cenários. Em cada tomada, existe um espetáculo de holofotes que destacam — e, às vezes, também escondem — Nick Cave. Quando não surpreendem com um clarão inesperado, vão aumentando vagarosamente como num crescendo musical. Se o uso das sombras e a oposição de planos por iluminação são marcas do cinema de Dominik, é fácil argumentar que, aqui, ele usa todo o seu conhecimento, ainda mantendo o entretenimento de quem está se divertindo, como se toda a técnica por trás fosse plano de fundo para a criação da imagem.


This Much I Know to be True não é tão emocionante ou intimista quanto One More Time with Feeling, mas certamente entrega uma outra visão da obra de Nick Cave, além de uma perspectiva otimista e esperançosa sobre o futuro — do cantor, da banda e de seus fãs. Em certo momento, enquanto Dominik nos mostra o estúdio de cerâmicas de Nick e suas estatuetas, o cantor narra uma de suas respostas para o Red Hand Files. Nela, admite o desespero que é reconhecer que nenhum de nós tem controle sobre nossas próprias vidas, mas que ainda temos o poder de, mesmo nas mais difíceis situações, discernir o melhor “próximo ato”. O que nos resta é caminhar sempre em direção a ele.


Tem mais do paraíso no inferno do que nos foi dito.

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2 kommentarer


José Brandão
José Brandão
27 juli 2024

Que texto massa!

Gilla

Augusto Junior
Augusto Junior
26 juli 2024

Ótimo review!!

Gilla
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