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Foto do escritorMontez

"O Exorcista" e a Imanência do Mal


Uma das primeiras imagens de O Exorcista (1973) é do céu com um enorme sol em seu centro. A imagem está desbotada, enquanto cânticos da região do Norte do Iraque ecoam pela paisagem. Aos poucos, o plano vai ganhando cor, passando para o amarelado e, subsequentemente, para um vermelho encarnado, quase sangrento. O ambiente, que primeiramente parecia tranquilo e seguro, paulatinamente foi tomado pela violência, apenas através da abertura de lente da câmera de Billy Williams, diretor de fotografia das sequências no Iraque, neste clássico dirigido por William Friedkin. Essa breve opção estética revela muito sobre a atmosfera do filme e o domínio do cineasta na forma de contar sua história. O primeiro, como fica claro, devido à mudança de clima que, imageticamente, consegue ser impressa em diversos momentos do longa-metragem (algo a ser exemplificado ao longo do texto); e o segundo, pela opção de Friedkin em inserir a ideia do mal aos poucos na narrativa, estabelecendo, a partir dessa mudança de cor, tal premissa.


 

O espectador, então, é levado para um local onde o Padre Merrin (Max von Sydow, com um olhar frágil e atormentado) está envolvido em escavações. Logo, um garoto avisa que foram encontrados artefatos. O ato de escavar traz consigo a natureza simbólica da imagem: é uma forma de conexão com aquilo que é material e imaterial, é o encontro direto com a vida e com a morte. Logo, em O Exorcista, aquilo que, à primeira vista, pode parecer um simples buraco no chão, onde objetos antigos são achados, revela-se como um elo crucial entre o mundo dos vivos e o mundo do desconhecido. A imagem escultural ali encontrada cabe nas mãos e carrega consigo uma força indescritível. O artefato demoníaco que o padre Merrin segura é a imanência do mal, a ideia de que ele está sempre presente, apenas esperando para emergir. Naquele close-up, Friedkin encapsula uma ideia que será divisora na narrativa. O olhar de Sydow, ainda mais assombrado, sublinha que houve algo mais que um encontro – escavou-se um sentimento, a maldade. 



Merrin, antes de ir embora, vai a uma ruína, e lá encontra uma escultura de uma entidade demoníaca, cuja força parece envolver todo o espaço e todos os seres vivos ao redor. Friedkin abre o plano para enquadrar von Sydow frente a frente com tal escultura de pedra, optando por encerrar o momento com o mesmo céu avermelhado que abriu o filme. Mais que encerrar como começou, o cineasta deixa claro que o que virá a seguir é a manifestação desse sentimento de forma direta. Ao cortar, em uma fusão – isto é, passando lentamente de uma imagem a outra – do Iraque para Georgetown, ambas as cidades estão conectadas por uma mesma ideia. Quando o plano, já nos Estados Unidos, se transforma em um zoom-in, tal aproximação é a demonstração não só da atmosfera, que naquele instante se estabelece de forma sorrateira, mas principalmente de como Friedkin utiliza os recursos de imagem e som para construir um filme que, em imagem, capta todo o poderio de algo que foge da compreensão humana.


É interessante, por exemplo, como essa dicotomia entre plano aberto e close-up e consequente combinação entre as duas técnicas visuais cria um senso de imersão e claustrofobia, intensificando a atmosfera de horror que paira pelo filme. O uso do zoom-in permite ao espectador se aprofundar na experiência dos personagens, compartilhando sua angústia e medo. O plano aberto, por outro lado, coloca os personagens em um contexto mais amplo, destacando sua vulnerabilidade diante das forças demoníacas. O rosto de Linda Blair, por exemplo, em uma das cenas em que sua mãe a coloca para dormir, é focado longamente, como se o espectador estivesse testemunhando os momentos finais da inocência daquela jovem garota. Não à toa, momentos depois, podemos observar as primeiras ações da possessão e a consequente busca, através da ciência, de uma explicação razoável. Mas o que testemunhamos é a presença de algo inexplicável, a maldade. "O mal contra o mal", mencionou um dos estudiosos com quem Merrin se encontrou ainda no Iraque. Essa é a frase que demonstra a saída para os acontecimentos nos próximos minutos.



É quando somos levados, finalmente, na sequência final, no exorcismo em si. A chegada do Padre Merrin, imagem icônica do cinema, está envolta pela neblina. A textura da imagem parece mudar, e tal ideia é confirmada quando ele adentra no quarto de Regan. Se a fotografia inicialmente captava aquele quarto com realismo, naquele instante é como se tais acontecimentos estivessem suspensos no espaço e no tempo. A mudança na paleta de cores não é apenas estética, mas uma maneira poderosa de comunicar a crescente ameaça que se abate sobre Regan e, consequentemente, sobre Merrin e Karras. À medida que o exorcismo se desenrola, a própria estrutura da cena parece se distorcer, e a presença demoníaca torna-se cada vez mais palpável. A luta entre o bem e o mal atinge seu clímax. É notável, por exemplo, como Friedkin se utiliza da fusão entre rostos tal qual em Psicose (1960), considerando um exemplo do gênero, para sinalizar essa maleficência presente em Regan. 



A montagem, por sua vez, é brutal, como se fosse uma água benta cortando a pele da personagem. Os planos de ação e reação se acumulam, os efeitos especiais se tornam ainda mais nauseantes – seja o pescoço virando ou o vômito em verde viscoso – e parece não haver saída. Merrin, que já havia observado aquela maldade em ruínas, testemunha sua presença palpável. Fica evidente sua fragilidade diante daquele demônio que toma formas e se utiliza de truques para desviar a atenção. O que Friedkin constrói na direção, assim como Evan A. Lottman e Norman Gay na montagem e Owen Roizman na fotografia, nesse momento, é a sensação de completa impotência do Homem diante daquilo que ele não sabe explicar. Quando não há mais saída, a única forma de vencer o mal é tomando ele para si e fazendo com que ele mesma se encerre. O salto pela janela se torna, então, um salto de fé, da crença de que a maldade vai sair daquele quarto pelo mesmo local que entrou. A vida segue, claro, mas o mal permanece ali, à espreita.

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