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Foto do escritorLuiz Gustavo

O estridente som do canto das sereias em “Feminino Plural”


A hipnose musical

No início do filme, somos apresentados a uma cena documental de uma mulher em uma maca dando à luz a um bebê, ouvimos somente o som de instrução dos médicos e os gritos de dor da mãe. Além disso, ao final do longo plano, escutamos um tom de felicidade na voz das pessoas da sala ao descobrir que é um menino. Nesse momento, o som que notamos como espectadores é estruturado a partir da escuta semântica estabelecida por Michel Chion. Chamamos escuta semântica aquela em que uma linguagem é reconhecida pelo ouvinte para interpretar uma mensagem. Percebemos simultaneamente aquilo que alguém nos diz e como o diz. Ao longo do filme, tal percepção sonora irá sendo desconstruída para criar sons próprios de uma linguagem feminina que não obedece às normas sociais.


Logo na cena seguinte, somos introduzidos a um grupo de motoqueiras misteriosas em planos fechados em estradas acompanhadas de um som gutural que está presente na trilha sonora de todo o filme e é um leitmotiv para essas personagens. Leitmotiv significa “Motivo condutor”, elaborado conceitualmente pelo compositor Richard Wagner, sendo um tema musical que está associado a um personagem, objeto ou emoção específica. Esses sons musicais não possuem uma relação diegética com a imagem no filme e, por conta disso, estabelecem um “contraponto audiovisual”, conceito elaborado no manifesto Declarações sobre o futuro do cinema sonoro em que cineastas soviéticos dizem:

Primeiro o trabalho experimental com o som deve ter como direção a linha de sua distinta não sincronização com as imagens visuais.  E apenas uma investida deste tipo dará a palpabilidade necessária que mais tarde levará à criação de um contraponto orquestral das imagens visuais e sonoras. (EISENSTEIN; ALEXANDROV; PUDOVKIN, 1928)

Isso estabelece uma nova relação com as imagens que acompanhamos dessas personagens, Temos uma hipnose musical repetitiva de um som não identificado pela nossa linguagem. Esse som misterioso é o que ajuda a estimular uma imaginação no espectador sobre a pluralidade feminina e gera uma continuidade visual na qual acompanhamos a trajetória dessas mulheres pelas estradas até um sítio, isolado da civilização, em que elas são recebidas por crianças, outras mulheres e homens, enquanto cantam felizes e se alimentam de um banquete. Hipnotizam a nossa audição tal qual as sereias que também vivem isoladas da sociedade em uma ilha. Temos aqui o início do que virá a ser uma auto representação performática.


O canto estridente das sereias

Na sala de jantar, enquanto dançam, uma mulher canta a seguinte frase: “As pessoas parecem ilusões maravilhosas delas mesmas, no entanto estão aqui”. Ao se referir a ilusões delas mesmas, o discurso usa da fabulação sobre si, ao mesmo tempo que se apoia em uma linguagem comunicativa hegemônica (que com o desenvolver do filme será substituída por uma linguagem pictórica, ou seja, baseada em signos sonoros próprios e não reconhecíveis que formam novas imagens sobre as personagens). É importante ressaltar a forma sobre como a frase percebe a diferença e a pluralidade no próprio feminino, elemento que pode ser visualizado na seguinte cena: Uma mulher mais velha está em um quarto e começa a cantar em frente ao espelho, repetindo que “cada ruga é uma vitória”.


Temos aqui a sedução da própria imagem a partir do som da voz, que define a percepção que essa mulher tem de si. Após isso, somos apresentados a uma outra mulher que se bate no chão e nas paredes, produzindo sons com o seu corpo. Ela bate com o punho fechado no chão e se rasteja nele até encontrar um baú encostado na parede que possui uma identidade sonora diferente da que estava sendo reproduzida pelo chão. Temos uma quebra da continuidade sonora, por conta das dores retratadas pela vivência da mulher negra que estava dentro do baú. Em oposição, logo em seguida, temos uma outra mulher feliz sobre a vida e uma mulher grávida. Descobrimos que todas essas mulheres estão dividindo o mesmo espaço e todas elas conseguem ouvir o som do coração do bebê, a maternidade é algo que une elas. No entanto, tal sonoridade não é algo construído por elas e sim imposto sobre elas.


Na cena seguinte, um homem está nu, isolado nas águas paradas do mar, criando sons com o seu lento caminhar nas ondas. A aparição de uma mulher, vestindo panos brancos, como se fossem uma cauda de sereia. Ela o hipnotiza através da alteração de sonoridade para o leitmotiv do filme. Temos um contraponto audiovisual, com sonoridades e gestos imagéticos que subvertem a posição tradicional da mulher e colocam o homem na posição de objeto visto de maneira erótica. Para Mulvey, em seu ensaio O prazer visual e cinema narrativo, as mulheres são simultaneamente olhadas e exibidas, tendo sua aparência decodificada no sentido de emitir um impacto erótico e visual de forma a que se possa dizer que conota a sua condição de “para-ser-olhada.”


No filme, elas passam a estar no clímax dessa posição ativa de construção sobre a própria condição como mulheres na sequência em que elas se reúnem na floresta, vestidas com panos brancos tal qual a menina na praia em cenas anteriores, a performatividade de gênero é pautada no canto da ópera feito em uma outra língua que é comum entre elas. “Só o indivíduo humano pode emitir, através da sua voz falada, um som que o caracteriza a ele e só a ele.” (CHION,2011). Elas se utilizam do surrealismo sonoro com o objetivo de romper com a linguagem hegemônica e por isso cantam como sereias, existe um deslocamento da sua representação que atrai os espectadores para refletir sobre as possibilidades do feminino.


Elas constroem sua própria realidade com seus códigos culturais, em que dentro de uma casa os homens passam a fazer companhia e a servir elas. Mais uma vez subvertendo as posições de olhar e prevendo a posição de Judith Butler ao pensar o gênero como performance. O corpo, na acepção de Butler, é um entrelugar. É o sistema de ressignificação onde um travestismo simbólico seria capaz de reinscrever o sujeito para além de discursos hegemônicos.As personagens no filme reinscrevem o signo dos seus corpos e vozes a partir da performance e assim expandem as suas representações.


Ao longo da análise, percebemos a forma sobre como o som exerce uma influência muito importante na retratação da linguagem cinematográfica escolhida pelo filme, através da utilização do leitmotiv e de frequências sonoras específicas para os sons guturais das cantorias dessas mulheres. Dessa forma, na última cena do filme, ao sermos reintroduzidos a essas mulheres vestidas de motoqueiras, as imagens delas são menos opacas, com o olhar imaginativo delas sobre si, temos o som estridente do canto das sereias em um feminino que é plural.

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