Como escapar de um historicismo com toques de Wikipedia? Há, no contexto cinematográfico brasileiro, uma produção volumosa de projetos que tentam assimilar discursos acerca dos povos originários. Nem todos, contudo, possuem o mesmo cuidado em torno da imagem e da forma de destrinchar a narrativa, caminhando ora para lugares-comuns explicativos, ora para um acervo histórico incipiente. Quando O Estranho, de Flora Dias e Juruna Mallon, parte de um início cuja temporalidade errante faz com que o espectador entre em contato com passado e presente de forma quase simultânea, o filme assinala que sua trajetória se dará por meio dessa ancestralidade e, principalmente, por conexões.
Em outros termos, longe da superficialidade do discurso, o projeto leva suas lentes para o espaço e para as indagações que emergem diante do que se apresenta. Se são as rochas e a terra que aconchegam e umidificam a imagem em 1590, são os aviões que decolam e aterrissam, provocando intenso barulho, que nos trazem para o presente. O longa acompanha momentos da vida de sete personagens que trabalham no aeroporto de Guarulhos e arredores, sem saber que o enorme terminal aéreo de passageiros foi construído sobre território indígena.
O passado está sempre impregnado na imagem, e a protagonista vivida por Larissa Siqueira permite que ele também esteja entre os objetos dos passageiros, ao colocar pequenas pedras da região dentro de suas malas. Mais que um lembrete, essa atitude é uma forma de demarcar uma presença. Ou seja, é através da terra, daquilo que foi tirado de seu povo, que ela permanece fincando seus pés. O aeroporto torna-se, então, um personagem central na narrativa, pois não é apenas nele que os personagens trabalham, mas onde também se concentra uma forte carga histórica.
Dentre todas as conexões realizadas por voos naquela pista, a mais natural – com a terra e o passado – é obliviada por meio do tráfego aéreo. É interessante como Dias e Mallon permitem que a própria linguagem cinematográfica transforme a feitura fílmica em um veículo de desequilíbrio de expectativas. Se a ideia é trazer a realidade para os percursos da ficção, as cineastas irrompem com o formato documental; se o registro é de enorme nitidez, com uma fotografia que ressalta a paisagem, elas oferecem, posteriormente, uma imagem gravada pelo celular, cheia de grãos, fazendo do registro amador uma forma de escuta e visionamento de uma narrativa.
De forma geral, o projeto lida com o estranhamento que pode ser gerado a partir do próprio uso do cinema como alcance do discurso. O espaço de conforto nunca foi o objetivo do filme – não é mera coincidência que, nos primeiros minutos, saiamos de 1932 para 1893 e, sequencialmente, para 1677. É através desses enfrentamentos com a forma que o longa-metragem se destaca na maneira de possibilitar um diálogo com o que se observa. A vida de cada um dos personagens que por ali passa recebe uma atenção, um olhar para seus amores e sua cultura, para suas alegrias e tristezas, construindo um quadro cênico e visual que passa longe de um encadeamento narrativo sequencial; muito pelo contrário, o espectador se torna observador das vidas que ali residem.
Por vezes, o projeto se torna carregado de um padrão constante para indicar o que o filme já fala tão explicitamente através de suas imagens (“bairros novos têm nomes de etnias indígenas”), mas isso, de forma alguma, diminui a potência de momentos como o diálogo trocado pela personagem de Siqueira com a de Patrícia Saravy que, mesmo distantes no plano, têm suas vozes com uma clareza que as faz parecer próximas do espectador. Seja por restrições da captação de som ou não, o momento se torna um ato de valor da fala e da escuta. É assim que O Estranho escapa de se tornar um projeto calcado apenas no desejo discursivo, oferecendo a linguagem como possibilitadora de questionamentos e instabilidades.
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