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Foto do escritorMarcelo Formiga

O entendimento do luto através da fantasia em “O Menino e a Garça”


O Menino e a Garça (2023), de Hayao Miyazaki (anunciado como seu último filme), nunca deixou de soar como semi-autobiográfico, em que o cineasta olha para o seu passado – de sua infância a seu cinema –, para pensar o seu futuro, em uma grande síntese de sua carreira. Este é um filme com vários dos principais elementos tonais e visuais do cineasta no que tange a comédia, as pausas reflexivas, os seres fantasiosos, as distorções dos espaços e uma unidade estilística já consolidada em seu cinema. Assim como Miyazaki fez em Meu Amigo Totoro (1988) e A Viagem de Chihiro (2001), em O Menino e a Garça ele usa do universo lúdico para criar uma aventura em que o personagem vai se descobrir e amadurecer.


Mahito é chamado para um universo mágico, onde vai esbarrar nos seus medos e inseguranças, para entender o luto, a perda, e, assim, não esquecer, mas superar o seu passado e até esse mundo mágico. Como fica claro no final, na cena em que, depois desse universo lúdico ruir, a Garça pergunta para Mahito se ele levou algo de lá para não se esquecer dessa jornada, e o menino mostra um dos blocos que fazia parte dos pilares daquele mundo, Miyazaki acaba evidenciando a importância dessa fantasia e da imaginação, mas entendendo também, o quão é necessário abraçar o futuro e as novas possibilidades do mundo real.


Não poderia ser mais significativo esse luto estar envolto na Segunda Guerra Mundial –, algo que é certamente muito pessoal para o diretor, que nasceu durante a guerra, além de refletir muito bem a impotência de Mahito diante da perda de sua mãe, na impotência japonesa perante as perdas na guerra e no pós-guerra, com o ataque nuclear e as diversas consequências físicas e psicológicas que perduraram no país. A fantasia, elemento muito forte nas jornadas de superação de Hayao Miyazaki, está aqui para que esses sonhos ganhem espaço, mesmo em meio a tanta violência, como acontece em Vidas ao Vento (2013) – longa que antecede O Menino e a Garça –, cinebiografia do criador de um avião de guerra, em que o realizador também relaciona guerra e luto, com uma potência dos sonhos –, sonhos esses, que dão propósito a vida do engenheiro, e, mesmo que sejam fragilizados em meio a esse contexto de violência, nunca abandonam o protagonista.



É interessante como O Menino e a Garça,  sendo um longa centrado em um estudo mais pessoal, abre espaço para que o diretor traga mais cenas com um forte aspecto de sonhos, antes mesmo de o mundo mágico ser efetivamente apresentado. É um filme que busca por um contato psicológico com seu protagonista através de imagens de caráter onírico e introspectivo, que introduzem muito bem os seus dramas e ampliam a potência sensorial da jornada. Essas imagens surreais criam uma unidade muito singular para a obra, onde as sensações audiovisuais geradas pelo contato de Mahito com os diferentes ambientes e seres, acabam se tornando mais expressivas que a narrativa em si. Miyazaki parece menos preocupado em estabelecer lógicas espaciais e temporais em seu mundo fantasioso, e isso tem muito a dizer sobre a abordagem mais intimista e psicologicamente densa da obra.


O Menino é a Garça é sobre efemeridades, e é incrível como Miyazaki absorve, de maneira bastante parecida com outros de seus longas – e destacaria, nesse caso, Princesa Mononoke –, através do body horror, a efemeridade do corpo: um corpo que se dissolve em água após um simples toque, um corpo ferido e desabilitado, que é enterrado na terra. A natureza é bela, existe um culto por ela, como é evidenciado em quase todos os filmes do diretor – e Miyazaki tem um apreço muito grande pelos quatro elementos da natureza, seus constantes movimentos que tornam vivo tudo ao redor. Esses elementos são capturados com muito fascínio dentro de toda a construção de uma textura visual das cenas e na dinâmica da ação.


A narrativa é formada por momentos intensos, de sensações surreais e abstratas, em meio a diversas referências visuais, temáticas e nuances psicológicas sobre o passado, que acabam abrindo portas para o futuro e, posteriormente, o fim. O Menino e a Garça não deixa de ser uma despedida melancólica de Miyazaki, olhando para todo o seu legado e fazendo um estudo profundo sobre amadurecimento e compreensão da morte. Mas é evidente um positivismo e esperança em todo o discurso, uma capacidade de superar e finalmente poder abraçar o futuro sem remorsos. O Menino e a Garça termina com um corte singelo, que não dá muitas satisfações ao espectador, mas que deixa uma coisa bem clara, Mahito seguiu em frente. Entender a efemeridade do mundo foi importante para entender o poder de suas relações presentes, o que está vivendo, os amigos que fez e vai fazer pelo caminho.

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