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Foto do escritorGabriel Lucas

O deslocamento do espectador em "O Auge do Humano 3"


Foto: Divulgação/ Estúdio Giz/ Retrato Filmes

O excerto poético que abre este texto foi escrito por Charles Baudelaire e dedicado a Victor Hugo, refletindo um olhar cosmopolita sobre a Paris de meados do século XIX. Na intrincada tessitura do verso poético, Baudelaire esboça um sentimento de inquietação gerado pela urbanização, um fenômeno que ressoa e provoca mudanças profundas na forma como percebemos os diferentes espaços de nosso mundo e como nos deslocamos por eles. O flâneur, em seus termos, é mais do que um simples caminhante – é alguém que percorre a cidade em solidão, que navega pelas complexidades dos espaços urbanos e, em seu silêncio, se entrega à plenitude da experiência sensorial através do olhar. Para o praticante da flânerie, o olhar transcende a mera representação; é uma forma de sentir, de atravessar o espaço e ser simultaneamente atravessado por ele. Mantendo a postura de espectador, o flâneur se torna consciente e atento ao que o rodeia. Estratégia semelhante é evidenciada em O auge do humano 3 (2023), longa-metragem de Eduardo Williams, sequência de uma obra anterior. Ao longo deste texto, buscarei esboçar como o experimentalismo na narrativa, bem como as diferentes formas de representação e o deslocamento de um sujeito-espectador configuram um aspecto notável no filme.


A imagem que primeiro nos chega é a de uma praia. Observamos a areia, o verde da vegetação, o mar e o céu nublado. Sons de uma conversa chegam aos nossos ouvidos, sem que possamos identificar sua origem. Por um breve momento, somos envolvidos por esse diálogo, ainda que sem uma conexão imediata entre a imagem e o discurso, até que duas figuras humanas emergem na cena. A câmera que registra o momento é notadamente instável; a lente grande angular utilizada confere uma profundidade de campo que, ao refletirmos, parece emular o ato de observar. Em seguida, a câmera se move, conduzindo-nos ao longo da praia, enquanto acompanhamos a conversa dos personagens que tentam deixar o local. É na câmera, onde inicialmente presumimos habitar o olhar de um sujeito, que reside, na verdade, nosso próprio olhar. Através do movimento e da angulação da câmera, somos guiados pela cena como meros espectadores que, ainda assim, possuem uma forma de poder: o poder de ver, de ouvir e, consequentemente, de sentir.

Foto: Divulgação/ Estúdio Giz/ Retrato Filmes

À medida que a cena se desenvolve, ao percorrermos diferentes espaços em locais distintos ao redor do mundo, começamos a compreender a ausência de um fluxo narrativo e discursivo linear. Contudo, torna-se evidente, na tessitura dos discursos dos personagens em cena, um tecido que, de algum modo, os une. A marginalização de suas identidades e corpos se torna visível na maneira como ocupam e se deslocam por esses espaços. Apesar disso, esses personagens carregam marcas e traços significativos de sua própria subjetividade, de seu lugar no mundo, que, embora distantes uns dos outros, estão interligados pelo ato da existência – pelo auge do humano, por assim dizer. Ainda que situados à margem, evocam um senso de comunidade entre si: entre os discursos que são interpelados pela voz narrativa no filme, o outro está sempre presente, mediado pela lógica fraterna da amizade e, ao  mesmo tempo, pelas relações de poder circunscritas nesses locais. Juntos ou separados, esses sujeitos nos acompanham – embora não nos percebam a princípio – por essas cidades e pela natureza; pelas ruas e pelas florestas; pelas avenidas e pelos rios. Percebe-se entretanto, que a vazão que surge dessa experiência espacial e sensível disputa atenção com o próprio plano narrativo da obra, de maneira que a forma com que essa abordagem é executada demonstram uma certa desorientação nos efeitos pretendidos para a produção.


Consideremos a posição do espectador conforme decupada na cena. Se o olhar desse suposto espectador se confunde com a própria configuração da lente angular, o lugar de quem observa conjectura, também, uma performance – mesmo que curiosamente imperceptível a olho nu – na mise en scène. Esse ato performático, quer seja atribuído a nós ou não, delimita um exercício criativo e consciente com o fluxo de escolhas narrativas realizadas no decorrer do longa, apesar de não serem efetivamente suficientes para estabelecer, em sua própria fluidez, um significado narrativo. De fato, não há problemas em termos nossas inferências rejeitadas, embora a manipulação do nosso pensamento para uma confusão entre as histórias que se tentam contar – ou não – esvaziam, ao que me parece, boa parte do efeito e da experiência da obra fílmica.


Entendemos, por fim, que o exercício notável de compreensão do humano e do ser, conforme observado em O auge do humano 3, perde-se no próprio ato de narrar uma história – ou histórias. A humanidade e a poética que estabelecem laços entre os sujeitos e seus corpos, mesmo através de distâncias consideráveis ao redor do mundo, não parecem suficientes para que possamos extrair elementos significativos da abordagem narrativa do longa. Apesar disso, as estratégias formais e experimentais com as quais manipula a imagem não estão vazias de sentido, logo, dialogam de forma interessante e notável com os discursos sobre o humano e a natureza – quer seja a natureza física dos espaços ou a natureza do próprio ser.


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