Para sua estreia como diretor, o chileno Felipe Carmona decidiu trazer a história de ex-líderes militares encarcerados em uma prisão de alta segurança. Apesar de presos, os antigos torturadores brutais do regime Pinochet vivem vidas de luxo, onde os seguranças são seus mordomos e suas celas se assemelham a finos quartos de hotel. Na medida em que se desenrola – e de maneira desconcertante –, Prisão nos Andes se mostra como uma espécie de estudo psicológico sobre poder, culpa e justiça. A cada cena, o longa empurra os limites do esperado, e essa originalidade na condução da história é um de seus maiores méritos. O cineasta se destaca logo em seu primeiro trabalho pela narrativa com uma escalada gradual de tensão e estranheza – positivamente (estranhamente), remete a produções da A24 pela sua ousadia.
A fotografia é um dos aspectos mais impressionantes do filme, pelo cuidado estético que, embora apresente alguns enquadramentos que aparentam ser mais amadores, atinge um nível de beleza e sutileza visual que eleva a experiência como um todo. O contraste entre a luz fria e as sombras densas nas cenas mais tensas cria uma atmosfera claustrofóbica, que reforça o desconforto constante que o filme explora pela natureza corrupta do poder, o que resta de honra ou culpa entre os prisioneiros, e o que significa justiça num contexto tão distorcido.
Juntamente, o design de som se mostra arrebatante. É um uso tão eficaz que faz soar como se o som fosse um personagem à parte; seja o barulho dos aviões, as ruas, sirenes, ecos dos corredores da prisão ou até o uso habilidoso dos diálogos, esse meticuloso trabalho garante autenticidade ao filme, corroborando com o espaço sufocante que a trama traz, além de uma sensação de realismo contrastada com a natureza surrealista de algumas cenas. A sequência do ataque de Trejo a Navarrete na chuva é um exemplo claro de como o som amplifica a tensão - mesmo que a cena em si tenha suas falhas, como a montagem optar por cortes rápidos em momentos que poderiam ter uma lentidão maior, mas mesmo estas não diminuem sua qualidade.
A construção da chilenidade é também louvável. Carmona consegue capturar detalhes que evocam uma sensação de fidelidade, especialmente no que se refere aos sons familiares e às interações sociais que refletem a cultura local. Pequenos detalhes, como o ruído específico de um avião que sobrevoa Santiago, ou as interações cotidianas entre os personagens, são capazes de gerar profunda conexão com a narrativa. No entanto, um grande deslize na reconstrução histórica – como a ambientação que parece se assemelhar com o início dos anos 2000 – faz o filme perder alguns pontos pelo anacronismo.
As atuações são um ponto forte, em especial Bastián Bodenhöfer, que oferece uma performance memorável, carregada de intensidade; Alejandro Trejo também se destaca, embora em alguns momentos tende ao exagero. Por sua vez, Mauricio Pešutić tem uma interpretação mais oscilante, mas seu monólogo é poderoso o suficiente para redimi-lo. Contudo, alguns membros do elenco parecem estar apenas cumprindo tabela, como Don Óscar, o que enfraquece a força das cenas.
Alguns momentos específicos, como a sequência no entretecho, são exemplos do cinema em seu melhor. A tensão é palpável, e a sensação de desconforto que cresce ao longo da cena é quase insuportável — um mérito de Carmona em criar uma atmosfera tão imersiva. A cena da conversa no carro, com Don Óscar tomando leite com chocolate, é um desses momentos de absurda beleza que só o cinema consegue proporcionar.
Entretanto, algumas escolhas narrativas e estéticas acabam parecendo desnecessárias, quase como fillers, como as cenas que buscam evocar terror e acabam destoando do restante do filme. O suspense psicológico já é suficiente, e a tentativa de forçar um horror explícito em certos momentos compromete o ritmo do longa. Além disso, o uso de rostos conhecidos da televisão chilena acaba tirando um pouco da originalidade que o filme tenta construir. Uma escolha de elenco menos convencional poderia ter dado mais força a essa proposta inovadora.
Ao fim, Prisão nos Andes é uma obra que se destaca não só pelo que é, mas pelo que representa. É um filme que se arrisca, que desafia e que tira da zona de conforto. Mesmo com seus tropeços, ele consegue criar uma boa experiência cinematográfica, que transcende a obra e conecta a uma narrativa maior sobre poder, culpa e memória. É uma história familiar, contada em outra pátria, em outro idioma. Sem anestesia. E sem anistia.
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