Quando li A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, pela primeira vez, alguns trechos me saltaram aos olhos, seja porque era o que eu precisava ler naquele instante ou pela forma que as palavras estavam arranjadas. Uma dessas organizações vocabulares que me pungiram estava nas primeiras páginas: a escritora mencionava que em algumas pessoas lhes faltam mais que o ouro, faltam-lhes “o delicado essencial”. Entendo, hoje, essas palavras como aquilo de uma beleza singela, cuja essência está imbricada na natureza do que é delicado. Anos se passaram, mas essa expressão continuava como uma daquelas que lembramos quando finalmente temos acesso ao sentimento que ela descreve. E foi no fim de tarde de uma quinta-feira que senti o tal “delicado essencial” pela primeira vez. A filmografia de Andrei Tarkovsky era minha maratona da vez, e seus filmes me deixaram com a sensação de que ele podia descortinar um mundo inteiro diante de mim.
Mas foi com Nostalgia (Nostalghia, 1983) que senti que não havia mais barreiras entre mim e o que assistia. O poeta Andrei (Oleg Yankovsky) estava na piscina vazia do hotel, carregando uma vela nas mãos, tentando atravessar seu comprimento sem que a chama se apagasse. A câmera acompanhava cada passo dele e, por aqueles longos e ao mesmo tempo tão curtos minutos, não havia nada no mundo além de mim, do poeta e da vela. Essa cena trouxe consigo uma beleza tão sutil, mas tão fundamental que, quando o filme se encerrou, notei que meus olhos estavam lacrimejando. Havia contido naquela película sentimentos que me atingiram visceralmente. E são justamente com esses sentimentos viscerais que Krzysztof Kieślowski compõe suas imagens e o que elas carregam. O momento em que Magda (Grażyna Szapołowska) finalmente olha pelo telescópio no quarto de Tomek (Olaf Lubaszenko) em Não Amarás (A Short Film About Love, 1988) representa justamente isso.
Com A Dupla Vida de Véronique [La Double Vie de Véronique, 1991], o tal do “delicado essencial”, em menos tempo que leva uma flecha para atingir o alvo, me levou a outro mundo. Assim como o poeta Virgílio n’A Divina Comédia de Dante, Kieślowski me acompanhou durante a jornada desses habitantes de seu universo que transborda de alma. Weronika (a impecável Irène Jacob) está ao lado de uma amiga no ensaio de um coral masculino. As notas do piano começaram a ser tocadas e os homens passaram a vocalizar as palavras da composição musical. A jovem, então, começou a murmurar as notas da partitura com os rapazes, fazendo com que a professora se impressionasse com sua potência musical, comentando que a voz dela era “incomum”. Ao sair daquela sala, Weronika, carregando partituras, caminhava por um corredor acompanhada de sua pequena bola transparente, que a fazia enxergar o mundo de cabeça para baixo.
Ela jogou o objeto no chão, fazendo-o alcançar o teto, e um pouco de poeira caiu em seu rosto. Neste breve instante, Kieślowski diminui a velocidade da cena, querendo imergir o espectador diretamente nas sensações dela. Estou, a partir desse momento, lado a lado com Weronika, a nossa Béatrice de Dante, que me toma da mão de Virgílio e passa a me acompanhar em direção ao Paraíso. Ela me apresenta ao palco onde o concerto acontecerá. Neste exato momento, todas as paredes do apartamento em que vivo tinham se tornado as paredes teatrais. O tom de verde que cobre o espaço configura uma atmosfera mística, muito semelhante àquela que encontramos em Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock, quando Judy sai do banheiro como Madeleine (Kim Novak). O som da flauta da composição de Van den Budenmayer (o codinome do compositor parceiro de Kieślowski, Zbigniew Preisner) dá início à partitura.
Kieślowski corta para um plano subjetivo de sua protagonista olhando para tudo ao redor. Eu e Weronika nos tornamos os mesmos. A emoção dela passa, também, a ser a minha. O arranjo vai crescendo aos poucos, como se eu estivesse no barco que nos leva para o Paraíso, observando a imensidão que se estende diante de mim. Até que a voz de Weronika vai se revelando ainda mais potente nota após nota, alcançando uma dimensão quase angelical, como se todas as suas cordas vocais se esticassem ao máximo. Ela sente uma dor no coração que também é minha. A câmera passa a se mover numa maior velocidade, virando para os violinistas e para o maestro. Vislumbro o rosto de nossa protagonista pela última vez, com seu olhar voltado para algo que só ela mesma sabia. E testemunho uma estrela explodindo em sua intensidade.
A câmera cai no chão e um corte leva essa mesma lente a flutuar por sobre a plateia, como uma borboleta que acabou de sair do casulo. Krzysztof Kieślowski encontrou, na linguagem cinematográfica, o equivalente ao “delicado essencial” de Clarice Lispector. A cena do concerto é uma demonstração completa da beleza em sua essência; entramos em contato direto com o que Abel Gance considera o principal de uma imagem: a alma dela. Quando a música se encerra e o cineasta polonês abre seu plano para mostrar o teatro inteiro indo ao socorro daquele anjo, voltei a mim, como se antes eu também estivesse flutuando. Os olhos estavam cheios de lágrimas e o corpo, renascido. Assim como Dante, havia visto o rosto de Deus e contemplado sua beleza. As nove Musas, aquelas que inspiram, mostraram-me as estrelas.
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