O corpo no cinema é volátil. Assim como tudo o que compõe a cosmovisão da imagem no cinema – a câmera, o cenário, os objetos –, os corpos em cena também estão sujeitos à metamorfose viva que caracteriza o movimento na linguagem cinematográfica. Mesmo em possível estaticidade, esses corpos produzem linguagem e, consequentemente, movimentam também discursos. É partindo do corpo que muitos cineastas produzem sua poiesis – o agrupamento de sua criação artística – de planos estéticos, escolhas e características que conferem vida e identidade à sua obra, permitindo-nos compreendê-las como expressões subjetivas e íntimas. Essa lógica é seguida com afinco por Luca Guadagnino em Rivais, mediante uma rica cadeia de elementos e efeitos de sentido que são meticulosamente esboçados em seus planos narrativo e estético. Dessa forma, embora tenha explorado o corpo e sua potência em produções anteriores, encontramos em Rivais uma intensificação dessa exploração, decalcada em múltiplas camadas: o gesto, o toque e o próprio movimento corporal e diegético. Esses elementos, objetos de análise deste texto, nos ajudarão a compreender como Guadagnino constrói sua história e aumenta a tensão de sua narrativa por meio de uma lógica criativa consciente.
No longa, acompanhamos três tenistas cujas vidas sofreram mudanças significativas em decorrência de suas trajetórias pessoais e profissionais. Tashi Duncan (Zendaya) é uma universitária e prodígio no tênis, com uma promissora carreira à sua frente. Art Donaldson (Mike Faist) e Patrick Zweig (Josh O’Connor) são amigos inseparáveis. Ambos assistem a uma partida de Tashi e, no mesmo instante, despertam um profundo interesse pela garota, especialmente ao observarem, da arquibancada, a voracidade e intensidade com que ela pratica o esporte. Ao confraternizarem, na mesma noite, à beira da praia e, depois, no quarto dos garotos, os três se entregam à descoberta do desejo intrínseco e indissociável de seus próprios corpos. Nesse momento, temos um vislumbre de como o gesto e o tato são potentes, e como o processo de captura da imagem é completamente consciente da ontologia desses elementos. Todos os três se alternam no toque, no beijo voraz e na impulsividade do desejo que arde no e pelo corpo. A câmera se aproxima em um close-up progressivo e, com isso, determina a progressão da tensão, da palpitação erótica dos personagens e do próprio espectador, em consonância com a trilha sonora estimulante e frenética, assinada por Trent Reznor e Atticus Ross.
A estrutura da obra, entretanto, não segue uma ordem cronológica convencional. Iniciamos, na verdade, com o princípio de uma partida entre Donaldson e Zweig, momento temporal que descobriremos, posteriormente, ser o mais avançado na narrativa. Tal escolha, de fato, nos coloca não apenas como espectadores, mas na posição de Tashi, aparentemente taciturna e meramente observadora do jogo. No entanto, à medida que a câmera se fixa em seu olhar, desvendamos mais sobre sua razão e significado. O olhar, assim como a câmera, acompanha o movimento e, junto com ele, o desejo e a voracidade da metamorfose emocional dos personagens. A percepção primária do que o olhar representa numa partida de tênis – o distanciamento do espectador e, simultaneamente, sua aproximação do objeto observado, o seguimento rápido da bola de um lado para o outro da quadra – nos proporciona um vislumbre da própria metáfora sobre a qual Rivais está baseado: a alternância entre o aqui e o ali, entre o antes e o agora, entre o eu e o outro, numa progressão sedenta pelo êxtase puro que permeia o fim prometido da partida.
A narrativa se enriquece à medida em que se entrelaçam esses constantes avanços e retornos. Como vimos, esses momentos não são vazios de significado, tampouco foram colocados em lugares provisórios ou inadequados no longa. Pelo contrário, essa movimentação, a cada instante, tece significações profundamente relevantes para a dinâmica entre os três protagonistas e intensifica a tensão que existe entre eles. Ao nos debruçarmos sobre a figura de Tashi, por exemplo, percebemos seu desconforto com relação à partida entre Donaldson e Zweig. Seu olhar, no entanto, nos confunde. O que inicialmente parecia ser um olhar de desprezo em relação a Zweig, devido a algum episódio em sua relação passada, revela-se como uma espécie de desconforto e insegurança. Tashi e Zweig ainda nutriam desejos um pelo outro, e haviam se encontrado nas noites anteriores ao jogo. Essas descobertas sucessivas contribuem para a construção de uma compreensão mais profunda sobre a relação dos três, que se torna uma tarefa complexa e desafiadora, por parte do espectador, para formar julgamentos concretos e definitivos. A montagem, então, torna-se um trabalho árduo e extremamente meticuloso para organizar os planos nesses avanços e retrocessos.
O processo de edição, mais do que um artifício organizador de eventos narrativos, nos oferece diversas possibilidades de interpretação ao fenômeno representado na e pela imagem. Também é comum pensar na relação entre esse recurso e a expressão do diálogo no cinema, onde ela se encarrega de nos mostrar os personagens que estão em cena, seus rostos e suas perspectivas. Consciente de sua potência, Marco Costa – que já havia colaborado anteriormente com Guadagnino em Até os Ossos – acentua o seu uso e o explora em conjunto com outros efeitos importantes da linguagem cinematográfica, como o close-up. A partida decisiva, por exemplo, ora é explorada em planos gerais e abertos, ora em planos médios e, em momentos específicos, em primeiro plano, todos cuidadosamente arranjados sob cortes precisos. Nesse sentido, é a composição da cena, aliada à mise-en-scène – a encenação – que também determina o ritmo dos corpos presentes no campo da imagem. Suas performances são realçadas a partir do momento em que são contrapostas, corpo a corpo – na quadra de tênis, na cama, no restaurante universitário, num estacionamento na cidade etc.
Assim como a bola de tênis, somos conduzidos de um lado ao outro da quadra, confrontando fatos e perspectivas, sem saber a que posição tomar – e se de fato devemos tomar uma. No fim, sentimos apenas uma necessidade profunda de nos entregarmos à tensão, ao ritmo dos corpos em performance constante e ao desfecho da longa competição, na qual corpo, ambição e desejo se associam à própria arte de contar uma história, cumprida de forma plena e com excelência por Luca Guadagnino.
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