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Foto do escritorJoão Mauro Cursi

O Cinema Marginal e a ruptura com o plano cinematográfico

Bang Bang, de Andrea Tonacci

Os movimentos cinematográficos dos anos 60 proporcionaram ao Brasil uma constelação de obras que passaram a compor o cânone histórico da arte nacional. É em 1971, no entanto, que Glauber Rocha, maior liderança do Cinema Novo, escreve “A Estética do Sonho”, uma atualização do seu manifesto estético defendido seis anos antes, “A Estética da Fome”. Neste seu primeiro manifesto, o diretor defende a representação violenta da fome como forma de estabelecer um modelo de representação da miséria no Brasil com teor revolucionário, de maneira que se rompa tanto com as chanchadas brasileiras, que eram consideradas comédias alienantes, quanto com o estilo estadunidense, que já dominava econômica e culturalmente o mercado de cinema nacional. Em 1971, o Cinema Novo já se mostra exausto enquanto brilham as obras de seu filho bastardo, o Cinema Marginal, movimento que é ainda mais independente e radical, na medida que dependia ainda menos do apoio estatal (em meio à ditadura) e possuía cineastas dissidentes que chegaram a trabalhar em obras cinemanovistas, como Rogério Sganzerla e Júlio Bressane. Neste texto, busco mostrar de que forma este segundo momento do cinema moderno brasileiro conduz um rompimento com a tradição que os cinemanovistas começaram.


No segundo manifesto de Glauber (“Estética da Fome”), o autor diz: “o irracionalismo liberador é a mais forte arma do revolucionário”. Isso é dito num momento em que já se fecha um ciclo simbolista do Cinema Novo, em que filmes como Os Herdeiros (1970, Cacá Diegues) e Os Deuses e os Mortos (1970, Ruy Guerra) fazem coro com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969, Glauber Rocha) — filme mais sofisticado da fase cinemanovista do diretor — em um estilo que, através do simbolismo e de abstraçẽs narrativas, visa criar um sentimento irracional que teria o poder de incitar um sentimento revolucionário perante o racionalismo das elites, responsáveis pelas produções das chanchadas e do estabelecimento do domínio cultural estadunidense. Se a violência crua com a qual a fome se manifestava não foi o suficiente para tirar o povo do transe, cabe aos cineastas do movimento, segundo Glauber, adentrar esse transe, desapropriá-lo e recriá-lo sobre os termos da geração cinemanovista.


Em Dragão da Maldade, por exemplo, a força repressora do Estado é simbolizada por meio do icônico Antônio das Mortes (Maurício do Valle), uma figura de capa e chapéu negros, carregando sempre um fuzil debaixo do manto, usado para caçar cangaceiros. Antônio das Mortes é talvez um dos personagens mais icônicos do cinema nacional e fez sua primeira aparição em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), provavelmente a obra mais reconhecida de Glauber Rocha. E em Dragão da Maldade, o antagonista posto a Antônio das Mortes é mais um líder cangaceiro, Coirana (Lorival Pariz), que tem um nome, mas é sobretudo símbolo: é também Lampião, Corisco e Maria Bonita. Ainda, um terceiro personagem emblemático desse filme é o Professor, que simboliza a complexa condição dos intelectuais brasileiros e é interpretado por Othon Bastos, que havia encarnado o cangaceiro Corisco em Deus e o Diabo


Talvez bastem essas descrições para que se entenda a potencialidade dos símbolos com os quais Glauber opera na construção dessa narrativa sobre a relação entre o povo e a repressão do Estado, mas eis um ilustrativo plano bastante emblemático da obra: Antônio das Mortes segurando o rosto do Professor e pondo seu olhar frente à câmera, em uma revelação da encenação, em uma chamada de consciência para que o intelectual enxergue a realidade; Antônio representa a falência do Estado repressor, autoconsciente na figura do exausto matador, Professor representa a elite intelectual em transe frente aos urgentes problemas sociopolíticos. Esse potencial simbólico, no entanto, também representa uma das maiores inseguranças do Cinema Novo: na mesma medida em que mobilizam e criam símbolos com liberdade e em prol de seus próprios ideais políticos, esses símbolos ainda funcionam em uma lógica de representação narrativa também usada pelo cinema tradicional com o qual os diretores cinemanovistas buscavam romper.

O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969). Reprodução.

O Cinema Marginal, nesse sentido, se posiciona um passo à frente. Abrigando referências que passam pelas chanchadas, pelo filme B e pelos quadrinhos estadunidenses, todo símbolo engolido é regurgitado com sentido distinto: cria-se um simbolismo iconoclasta. Perceba que muitas dessas referências são justamente aquelas rejeitadas a priori pelos integrantes do Cinema Novo — pelo menos na teoria, isto é, nos manifestos escritos e discursos de Glauber. Um exemplo ilustrativo desse processo de recaracterização de símbolos diversos é Hitler, III Mundo (1968, José Agrippino de Paula), em que, além do ditador nazista, são trazidos para a periferia brasileira o Coisa, dos quadrinhos da Marvel, e um samurai interpretado por Jô Soares. Ainda que a imagem de Hitler sirva de comparação com a figura autoritária dos militares do período (estamos falando do momento em que se instaura o AI-5), as outras referências são adotadas sem qualquer reserva de sentido que têm originalmente na cultura estadunidense ou japonesa, respectivamente — os símbolos são adotados sem qualquer respeito ao seu significado.

Hitler, III Mundo (1968). Reprodução / Cinemateca Brasileira.

No entanto, são outros dois filmes que concretizam a desconstrução simbólica de maneira mais incisiva: Sem Essa, Aranha (1970), de Rogério Sganzerla, e Bang Bang (1971) de Andrea Tonacci.


Em Sem Essa, Aranha, experienciamos, ao redor da figura amoral do personagem que dá nome à obra (“Aranha”), uma radical desconstrução da narrativa cinematográfica. Se o plano é entendido como uma das unidades mais básicas da forma fílmica, a sua descaracterização constitui um ato de revolta contra o padrão estético tradicional. E é justamente isso que Sganzerla promove: o filme, a rigor, não tem enquadramentos, tem no máximo um fluxo de enquadramentos que se recusam a fixar-se. Durante toda a extensão da obra, a câmera permanece na mão, em movimento, e qualquer sensação de causalidade é inexistente: as falas se repetem, os sons são emitidos por personagens desconhecidos, tudo forma uma espiral, de modo que atribuir qualquer estrutura a essa obra seria um ato ingênuo.

Sem Essa, Aranha (1970). Reprodução / IMDb.

Em Bang Bang observa-se um estilo semelhante. A montagem atua de forma que os diferentes acontecimentos do enredo (se é que se pode atribuir um enredo a uma narrativa tão disforme) possuem escassa relação causal. Os planos, também, se alongam de forma que o seu sentido torna-se tão tautológico que se esvai. Uma das cenas mais icônicas do filme é a que o personagem de Paulo Sérgio Pereio veste uma máscara de macaco e performa no banheiro; o que isso significa? No contexto da obra, tanto faz, contanto que não haja resposta certa e imutável, aliás, é preferível que não signifique nada. Toda a técnica atua em conjunto para apresentar uma obra que é formalmente disforme, que não assume contornos pré-estabelecidos e, dessa forma, recusa qualquer padrão imposto.

Bang Bang (1971). Reprodução.

É importante dizer que isso não anula a possibilidade de que uma interpretação tal seja atribuída às obras como acontece com qualquer obra de arte. O que acontece é uma desconstrução formal tão radical que não se expressa pela exibição de símbolos, mas pela negação de sentido a todos eles. É esse o único ponto em que as técnicas desses filmes convergem: na negação da narrativa. E é sobretudo negando o sentido tradicional do plano cinematográfico que se rompe com a tradição de representação simbólica, afinal, se não se pode esperar sentido nem dessa unidade cinematográfica que corresponde à representação mais básica — literalmente a delimitação daquilo que está em tela — e sobre a qual se funda essa sétima arte, o restante rui. Eis o verdadeiro ato de revolta.


Além disso, para conhecedores das tendências do cinema contemporâneo, fica evidente a semelhança com a descrição que fiz do tratamento a respeito do plano cinematográfico nessas duas obras com o que acontece em tendências como o cinema de fluxo e o slow cinema. Nessas tendências, que se localizam historicamente em um momento já posterior à efervescência experimentalista do modernismo com raízes no Neorrealismo Italiano e na Nouvelle Vague francesa, o que se destaca é a revisão do conceito tradicional de plano cinematográfico, que, mediante planos-sequências e experimentações de montagem, se alonga ou se decompõe de modo que a forma do plano se torna evidente e, com isso, adquire novas capacidades estilísticas, que dialogam com a fluidez e a velocidade da contemporaneidade. Nesse sentido, o Cinema Marginal não rompe só com o cinema clássico tradicional, mas também com o recém-nascido cinema moderno. As obras dos marginais, mas especialmente as de Tonacci e, mais ainda, de Sganzerla, constituem um verdadeiro prenúncio à contemporaneidade enquanto a própria forma fílmica é revista em sua função estabelecida tradicionalmente.


Desse modo, o Cinema Novo e o Cinema Marginal convergem no rompimento com a tradição, mas que, por meio da forma fílmica, ocorre mais radicalmente no segundo do que no primeiro, de maneira que, apesar da aproximação ideológica, abre-se um abismo estético entre os dois movimentos modernos. A recusa da forma cinematográfica, da narrativa, do plano, constituem uma ruptura irracional além daquilo que Glauber Rocha havia teorizado — ou talvez seja a plena concretização do que teorizou em seu manifesto, mas não pôs de fato em prática. Em uma leitura contemporânea e, portanto, com certo distanciamento histórico, Glauber Rocha parece, como muitas vezes em sua carreira, mais profeta que historiador.

Quadro final do marginal Jardim de Espumas (1970, Luiz Rosemberg Filho). Reprodução.

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