“Na cidade não consigo sonhar.”
Após Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, lançado em 2018, o casal formado pelo português João Salaviza e pela brasileira Renée Nader Messora se reúne para mais um filme centrado na comunidade Krahô – habitantes do cerrado brasileiro, especificamente do estado do Tocantins –, resultado de anos de pesquisa da cineasta. A Flor do Buriti segue os passos de seu antecessor e se situa na linha tênue entre documentário e ficção, especialmente ao utilizar de nativos na filmagem, garantindo um ar maior de naturalidade às cenas. A dupla equilibra a história secular da comunidade com seus rituais cotidianos em uma bela imersão sinestésica, passando pela invasão de fazendeiros em seus territórios até os horrores provenientes da exploração do agronegócio e semelhantes, advindas do governo Jair Bolsonaro.
De início, vemos uma discussão acerca da demarcação de terras, enquanto duas personagens assistem a uma deputada indígena discursar no Congresso Nacional, que logo mais é ocupado por centenas de pessoas a protestar contra o atual governo e suas políticas extrativistas. Esses eventos estabelecem um senso de urgência para a mensagem de resistência da comunidade ao mostrar seus impactos políticos no povo Krahô, solidificando o lado documental do filme. Contudo, por mais relevante que seja, a obra peca por não administrar bem a fluidez da narrativa: há uma grande falta no equilíbrio entre as cenas de encanto e de análises, tendo duas como bons exemplos da balança “docufictícia”: a primeira, na viagem da jovem Jotaj ao Brasil em plena Ditadura Militar, onde os horrores da Guarda Rural Indígena são revividos através de seus olhos, sendo um lembrete doloroso da contínua injustiça e impunidade enfrentada pelos povos indígenas; a segunda, através do personagem de Patpro, um contador de histórias e guarda da aldeia, que emerge como figura central da película. Este, por sua vez, vive o dilema entre engajar-se politicamente e estar presente para o nascimento de seu filho. Apesar dessas duas chamas de vulnerabilidade e humanidade, elas não harmonizam por completo com as cenas contemplativas do cotidiano e espiritualidade da comunidade da forma como deveriam.
De forma sutil, os diretores introduzem o impacto do exterior na comunidade, como o uso de telefones e a incorporação de palavras da Língua Portuguesa no dialeto Krahô. Seguindo este fluxo, somos levados ao cotidiano do povo. Filmando corpos e territórios em 16mm, Salaviza e Messora permitem ao espectador navegar pela beleza dos nativos em uma experiência sensorial por um ritmo quase hipnótico, especialmente nas cenas noturnas, nas quais o transe se intensifica. O som é também um elemento chave que muito agrega à jornada: a ambiência da natureza, como cantos de pássaros e balançar de folhas, fluidificam-se com os diálogos do povo Krahô, quase tornando-se um elemento só, agregando para um vislumbre genuíno de suas vidas cotidianas. É respeitável o zelo tomado com o espiritualismo destes, mas, infelizmente, não é suficiente para cumprir com os possíveis objetivos traçados pelos realizadores. Belezas à parte, o longa acaba por cometer uma grande falha em seu quesito militante, o que contribui para criar um desequilíbrio: ele se mostra pomposo, mas superficial com sua mensagem central.
A desarmonia com sua dimensão política – que, particularmente, é tão urgente quanto – faz com que acabe por deixar a pauta em stand by. A Flor do Buriti divide-se em três linhas temporais que, ao invés de solidificarem-se, vão se bagunçando e tornam, para o espectador, uma experiência fatigosa. É perceptível notar, em uma digestão mais lenta, um quê de “exótico”; a direção intervém mais do que deveria e os personagens acabam como dispositivos da mensagem, sem promover um real desenvolvimento ou demais informes acerca da comunidade Krahô. Se, por um lado, os anos de pesquisa de Renée Nader Messora mostram-se proveitosos, é inegável que as raízes portuguesas de João Salaviza atrapalham sua formação, e mesmo mostrar familiaridade em trazer os Krahô novamente para as telas, as distâncias culturais dos diretores com a comunidade se evidenciam muito mais do que deveriam.
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