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O Ator e o Gesto em "A Filha do Palhaço"



Parece óbvio, mas existe uma diferença marcante entre inexpressividade e sobriedade fílmicas. O primeiro conceito, como o prefixo indica, sugere uma falta de expressividade, dos recursos que provocam emoção. O segundo caminha na direção do que é equilibrado e moderado, sem que isso o transforme em sinônimo do primeiro. Muito pelo contrário: há a possibilidade, na linguagem cinematográfica, de ser sóbrio e utilizar-se de ferramentas para que a emoção seja sentida. É interessante, por exemplo, notar que muitos cineastas contemporâneos, principalmente no cinema hollywoodiano mais comercial, acreditam que um drama sóbrio implica diretamente em uma falta de cores ou de tonalidades emocionais. A Filha do Palhaço, filme de Pedro Diógenes, demonstra que é possível construir uma narrativa cinematográfica que seja, ao mesmo tempo, sóbria e emocionalmente impactante.


Desde o primeiro encontro entre Renato (Demick Lopes), um humorista que se apresenta interpretando a personagem Silvanelly, e sua filha Joana (Lis Sutter), uma adolescente de 14 anos, fica claro que o distanciamento entre ambos os impede de cumprimentos muito carinhosos. Há sentimentos reprimidos, desejos de comunicação sucumbindo em um silêncio que para os dois lados do espelho cinematográfico – a diegese e a espectatorialidade – se torna desconfortável. Diógenes opta, por sua vez, por planos estáticos, imagens que compreendem dentro do quadro os dois atores e o espaço que eles dividem. Neste primeiro momento, tanto ele quanto ela ainda estão tateando os caminhos relacionais. Há, no filme, uma cena que consegue refletir de alguma forma essa relação: em uma peça de teatro, Marlon (Jesuíta Barbosa) comenta que seu companheiro de cena parece ter o rosto incompleto. Em outros termos, é como se a imagem do outro fosse um quebra-cabeças que precisa ser montado para que a figura seja vista em completude. Essa é a natureza inicial da relação entre pai e filha.



Dessa forma, o gesto se torna um ponto essencial de entendimento entre ambos. Em um dos momentos mais emotivos da obra, Renato leva uma televisão de tubo para casa e comenta com a filha que ela pode assistir a DVDs piratas que ele tem. Ela observa tais objetos com um ar de estranheza e se distancia, fazendo com que ele guarde todos eles com uma expressão melancólica. O cineasta filma essa troca em um mesmo plano, compreendendo a profundidade de campo e o gesto como veículos dessa vertente emocional do projeto. Mais a frente, após uma discussão, esses mesmos DVDs, importantes para Renato, são atirados no chão por Joana. O que é afeto virou raiva, e a construção desses personagens se torna ainda mais complexa, além de afetiva. O camarim de Silvanelly, personagem que foi construída a partir de uma forma do pai fazer a filha sorrir quando criança, é um espaço onde essa cumplicidade e carinho estão presentes, como se os bastidores ocupassem um espaço gigantesco na forma que a performance se desenrola no palco.


Notemos, por exemplo, como é lá que Renato ensaia uma forma de se aproximar de Joana, assim como é nesse espaço que ela entra em contato com os objetos e com o passado do pai, fascinando-se pelo que descobre. São raros os momentos em que Pedro Diógenes fecha o plano no rosto de seus atores, permitindo que a centralidade do seu filme não esteja nos artifícios, mas, sim, na cumplicidade da relação que existe entre aqueles em cena e, portanto, valorizando o papel destes como veículo da expressividade fílmica. Os diálogos, portanto, se tornam ainda mais fortes pela forma que são entregues e por como os corpos desses personagens interagem entre si, permitindo que cada novo degrau de contato entre ambos se torne ainda mais tocante. Ora, se, inicialmente, eles vão dormir calados, em cômodos distintos, no último momento é dentro de um abraço que pai e filha demonstram o carinho construído no decorrer daqueles dias.



Através de recursos simples da linguagem cinematográfica – a já mencionada profundidade de campo ou o lento movimento de câmera aproximando-se dos personagens aos poucos –  Pedro Diógenes constrói seu filme naquilo que o ator e a imagem pode trazer de mais expressivo, produzindo  um impacto ainda maior em seus momentos finais. A Filha do Palhaço permite que o espectador, como menciona a música-tema do filme, ouça o coração desses personagens e enxergue como a feitura fílmica decorre dessa possibilidade de exprimir em imagens e gestos a descoberta do outro, daquele estranho que fez falta e que ocupa seu lugar no quebra-cabeças, compondo todas as peças. Com o rosto completo diante um do outro, dividindo uma música, o filme chega no ápice da sua linguagem e de sua expressividade, pungindo o espectador à emoção mais genuína. Sem afetações, mas repleto de afeto, o longa de Pedro Diógenes se consolida como um carinhoso retrato do amor ao ator e ao cinema.

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