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Foto do escritorFelipe Duarte

"Ninguém Sai Vivo Daqui": Um retalho de encenações

Fernanda Marques como Elisa. Foto: Divulgação

Em 2013, a jornalista Daniela Arbex publicou o livro-reportagem “Holocausto Brasileiro”, trazendo depoimentos de ex-funcionários e ex-pacientes do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, também conhecido como Hospital Colônia. Fundado em 1903 no interior do estado de Minas Gerais, o Colônia é o maior hospício do território brasileiro, e contabilizou cerca de 60 mil óbitos de internados até o ano de 1980. Ao fim dessa década, foi visitado pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, figura emblemática da luta antimanicomial, que descreveu o espaço como similar a um “campo de concentração nazista” [1]. O trabalho do fotojornalista Luiz Alfredo, realizado em 1961 e utilizado por Arbex em seu best-seller, dá sustento à comparação [2]. 

Foto de Luis Alfredo do Hospital Colônia, para a revista O Cruzeiro, 1961
Foto de Luis Alfredo do Hospital Colônia, para a revista O Cruzeiro, 1961

Desde a publicação de “Holocausto”, os contos de denúncia renderam aclamação à jornalista e propulsionaram a retórica da luta antimanicomial brasileira, além de darem origem a um documentário homônimo e a uma série dramática entitulada Colônia (2021), dirigida por André Ristum. Dada não só a relevância histórica, mas também o sucesso comercial de sua presença na mídia, o enredo do Hospital de Barbacena chega agora aos cinemas brasileiros,  remontando o material da série para o formato de longa ficcional.


Essa nova iteração chega com o título de Ninguém Sai Vivo Daqui, também assinada por Ristum e, ambientando sua narrativa no ano de 1971, busca abordar os horrores do hospício a partir da experiência de Elisa (Fernanda Marques). Jovem de família abastada, Elisa é internada a contragosto, como punição por rejeitar um casamento arranjado pelo pai e engravidar fora do matrimônio.


A cena inicial do longa mostra a protagonista sendo enviada aos pontapés para o hospício, jogada no vagão de carga de um trem, que transporta dúzias de desfavorecidos. A cinematografia em preto e branco de Hélcio Alemão Nagamine – que parece referenciar os trabalho fotográfico de Alfredo – valoriza as luzes duras que iluminam os rostos sofridos e tristes dos futuros pacientes do Colônia, em contraplano ao primeiros dos muitos closes do rosto de Elisa, que observa os outros ocupantes com uma face amedrontada, mas livre de marcas e ornada por um belo penteado. Em meio à tragédia dos marginais, Elisa é um corpo estranho.


A jovem mulher, então, atravessa alguns clichês da narrativa do personagem internado (“Doutor, houve algum engano”) nas cenas que compõem seu primeiro dia no centro psiquiátrico, observando o desalento dos pacientes e a violência da equipe que ali trabalha. Aterrorizada, Elisa só encontra amparo em algumas mulheres também internadas: Valesca (Andreia Horta), amante de um político influente, e Wanda (Rejane Faria, em uma performance sensível), que décadas atrás também chegou grávida ao hospital, e viveu todo esse tempo afastada seu filho, cujo paradeiro é desconhecido.

Rejane Faria como Wanda. Foto: Divulgação

É através dessas personagens que o filme busca ilustrar que o Colônia não só ostracizava aqueles com algum transtorno psiquiátrico, mas servia como algoz para qualquer um que fosse socialmente indesejável, por conduta, raça, sexualidade ou classe. Como aponta o texto que abre o longa, as histórias são reais, mesmo que os personagens sejam inventados. É ao tentar unir esses dois polos, fato e ficção, que o longa-metragem fracassa.


Ninguém Sai Vivo Daqui é uma obra que convulsiona. E os primeiros sintomas surgem centralizados nas figuras dos atores, operando em registros que destoam entre si, provocando distanciamento da narrativa ainda nos primeiros 10 minutos. Fernanda Marques apresenta um gestual novelesco, transbordando em planos fechados, enquanto Andreia Horta mantém uma atuação naturalista e pouco afetada. Não são casos de intérpretes pouco capacitados, mas de falta de harmonia entre o estilo da filmagem e a performance, resultando em uma encenação pouco coesa.


O quadro piora conforme o filme avança, e o próprio roteiro parece estar desnorteado. Os personagens dos atores Arlindo Lopes e Bukassa Kabengele recebem pouca ou nenhuma chance de desenvolvimento, e o filme parece pedir um favor ao espectador – aceitar a presença dessas figuras em quadro sem uma justificativa para tal. Mas talvez a maior falha seja o desenrolar rumo ao clímax.


Após testemunhar a morte de Valesca, ser submetida a terapia de choque, tolerar assédios sexuais e sofrer um aborto, Elisa começa a alucinar para sobreviver ao Colônia. O filme parece argumentar que a enfermidade psíquica é inevitável naquele ambiente, seja ela pré-existente ou não. Até que, sem muita explicação, a enfermeira Laura (Naruna Costa) percebe que Elisa nunca esteve doente e bola um plano de fuga para a garota, distinguindo-a de outros personagens por nenhum outro motivo que não para adiantar o enredo fílmico. É um gesto arbitrário, que nega a sanidade e dignidade de outros personagens e, acima de tudo, a tese humanizadora que o longa poderia (e deveria) construir.


Adaptar uma série para o formato fílmico não é uma tática sem antecedentes de sucesso  – O Auto da Compadecida (2000) de Guel Arraes surgiu dessa forma –, mas é com certeza um risco; aqui, não compensa. O esforço de transformar dez episódios em um trabalho de minutagem inferior a 1h30 rendeu um fruto não só dramaticamente insuficiente, como desatento às retóricas que deveriam ser o objetivo da exploração de um episódio histórico tão lastimável quanto o Hospital Colônia. É o tipo de acontecimento que necessita ser reportado, fotografado e relembrado, mas, infelizmente, ao almejar filmar sua história, Ninguém Sai Vivo Daqui provê pouco mais do que um retalho de encenações.


 

Notas


[1] Presente na matéria “Hospital Colônia de Barbacena: como tudo mudou após Basaglia” https://www.brasildefato.com.br/2024/07/06/hospital-colonia-de-barbacena-como-tudo-mudou-apos-basaglia

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