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"Milton Bituca Nascimento": o culto e a mortalidade



Divulgação / Gullane+
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As luzes se acendem e desafiam o cair da noite. As arquibancadas são preenchidas e não sobram espaços vazios. Testes sonoros ecoam pelo ambiente. A estática das caixas de som divide o espaço com vozes ansiosas, que antecipam a chegada de sua estrela. É nesse clima de empolgação que encontramos o estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, nos primeiros minutos de “Milton Bituca Nascimento”.


Dirigido por Flávia Moraes, o documentário acompanha a turnê de despedida que o ídolo da MPB realizou em 2022. As apresentações se dividiram entre o Brasil, a Europa e os Estados Unidos, e o filme ilustra a influência supranacional do cantor com entrevistas a diversos nomes globais.


De cineastas como Spike Lee a produtores musicais como Quincy Jones, morto em 2024, seus depoimentos cimentam Nascimento como figura coletiva. Entre amigos próximos, conhecidos e admiradores a distância, é na pluralidade de vozes que o longa elabora uma espécie de legado imaterial, irrestrito às canções e performances do músico.   

Divulgação / Gullane+
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Nem por isso essas últimas deixam de ser importantes. É interessante como a produção encontra um conforto nessa mistura de oralidades, transitando entre as letras e as reflexões compartilhadas. A miscelânea acontece com naturalidade e faz jus à riqueza da discografia, sem nunca excluir os menos habituados ao repertório de “Bituca”.


Mas além de pegar a estrada durante os shows de “A Última Sessão de Música”, que anunciaram o fim da vida de Milton nos palcos, o filme também tem interesse em viajar por suas memórias. Para isso, elege uma coleção de signos, que autorizam o fabular dessas regressões ao passado e a costura entre variadas linhas temporais.

Divulgação / Gullane+
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O trem, por exemplo, surge entre as cenas iniciais e se coloca para evocar a infância do artista. Trilhos se inscrevem sobre as pedras do solo mineiro e a fumaça da locomotiva sugere um misticismo por detrás da origem de Nascimento. Lapsos de um jovem garoto também assinalam esses retornos, e tudo é construído com o maior refinamento técnico. Essa jornada é conduzida pela narração alentadora de Fernanda Montenegro, e o encontro entre os dois titãs promete desvendar a trajetória do músico e aproximar público e personagem. 


Ao menos é o que indica a produção da Gullane, cujo orçamento se traduz em câmeras ágeis – habéis em contrapor a escala dos palcos e a intimidade do protagonista em planos fechados – na lista de convidados luxuosos – e que incluem outras feras da música brasileira, como Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque – e no licenciamento de uma série de materiais de acervo.


No entanto, é importante observar que, se esses destaques fomentam a merecida homenagem a um ser louvado, também indicam uma contradição do projeto. São recursos que atrapalham o mergulho pelo desconhecido de alguém tão querido pelo público brasileiro e reforçam uma série de inseguranças.


A voz de Fernandona é o primeiro passo de um fio condutor marcado pelo didatismo. Parece haver desconfiança em relação às músicas e experiências que os entrevistados exaltam. O roteiro elege traduções visuais para suprir qualquer entremeio das vivências do cantor, e inibe um diálogo maior com a imaginação daquele que assiste.


Não é que falta esmero ao registro dos horizontes mineiros, de minerais reluzentes que simbolizam o brilho da carreira de “Bituca”, ou à sobreposição visual entre falas, silhuetas e arquivos recuperados em altíssima qualidade. Pelo contrário.


Tudo parece tentar se igualar à forma divina que retrata o músico, e o culto não perde o gás em nenhum momento. Dos pontapés que iniciaram seus trabalhos à formação do “Clube da Esquina” – movimento musical que uniu o personagem a nomes como Fernando Brant, Lô Borges e Toninho Horta durante os anos 60 e 70 –, não existem pontos baixos na narrativa construída por Moraes.


O passado sofrido, determinado pelo racismo e a dificuldade inicial de se colocar enquanto artista, não passa de pequena mancha, mero borrão de uma vida hoje marcada por inúmeros louros. Não que as dores devessem, necessariamente, tomar maior dimensão ou qualquer foco do filme, especialmente se considerarmos o recorte da turnê escolhido para a tela. 

Divulgação / Gullane+
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Mas a preocupação estética que organiza shows apoteóticos e o paralelismo entre figuras que, em teoria, estão ali para engrandecer aspectos muito diversos de sua vida — caso da participação da filósofa Djamila Ribeiro, que explica a força de Nascimento para a representatividade negra —, resulta em uma progressão desprovida de nuances.


Apesar da beleza com que a jornada é pensada, não existe muito a diferenciar, para o documentário, a primeira apresentação de “Bituca” daquela que finaliza a produção. 


Seria um sacrilégio dizer que as vozes e as músicas são insuficientes para validar essa homenagem, que afinal assinalam a pluralidade que só se pode associar aos deuses da arte. Mas, no geral, a impressão que fica é a de estarmos diante de uma imagem. Aqui, é difícil ver Milton Nascimento enquanto pessoa.


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