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“Mickey 17”, a joia bruta de Bong Joon-ho

Atualizado: 31 de mar.

Foto: Divulgação/ Warner Bros.
Foto: Divulgação/ Warner Bros.

Hollywood abraçou o sul-coreano Bong Joon-ho como poucas vezes foi visto com um diretor estrangeiro. Em 2020, seu Parasita fez história no Oscar, sendo o primeiro filme não falado em língua inglesa a levar o prêmio principal da noite e ainda garantindo mais três estatuetas, incluindo roteiro original e direção, ambas direcionadas ao cineasta. Não faltaram caminhos a se seguir na carreira de Bong, e os olhos do mundo se voltaram para ele, questionando o que viria após a consagração. Ele se tornaria mais uma engrenagem na máquina estadunidense ou continuaria tendo oportunidades de imprimir uma marca tão particular em suas obras? A resposta veio cinco anos depois em Mickey 17.


O filme, de distribuição da Warner Bros. e falado em inglês, é adaptado do romance Mickey7 de Edward Ashton. Nele, conhecemos Mickey (Robert Pattinson), que embarcou numa expedição espacial como um dispensável, funcionário capaz de morrer pelo seu trabalho – literalmente – repetidas vezes. Ele fica a cargo de todos os serviços arriscados, como exposição a substâncias e organismos potencialmente letais e, se isso o matar, o que acontece muito, é só imprimir uma nova versão sua, que já vem imbuída de todas as lembranças dos Mickeys anteriores. No livro, já trata-se do sétimo modelo, e a adaptação adiciona dez porque o diretor “queria matá-lo mais vezes”, uma das melhores explicações para uma mudança de título que se vê por aí.


Bong consegue manter sua originalidade e garante que sua assinatura esteja em cada cena, mas a natureza do material base exerce forte influência aqui, especialmente na arrastada introdução. Em um livro de ficção científica, é aceitável que se dedique várias páginas destrinchando conceitos, e que glossários complementem a leitura, mas isso torna-se incômodo no audiovisual. A narração em off discorre por minutos a fio sobre todas as minúcias do mundo futurista em que a história se passa e como Mickey chegou até ali. O diretor conduz isso com charme, mas não deixa de causar a impressão que está se vendo um escrito transposto para as telas, que não teve a chance de realmente ganhar vida como filme, de explorar os recursos que a nova mídia oferece.


É um problema que o cineasta já enfrentou anteriormente em Expresso do Amanhã (2013), adaptado de quadrinhos e também uma ficção científica. Toda a ação era interrompida para diálogos detalharem como funcionava o trem, sua divisão em classes e como chegaram ali, porque as informações eram necessárias para deixar o público na mesma página que os personagens e fazer a história andar. Situação bem diferente do seu último longa original Parasita, que tem um ritmo muito mais afiado e nos permite conhecer os personagens e as condições em que vivem por suas ações e como são encenadas, mas é uma trama que tem a vantagem de se passar na Coreia do Sul do século XXI, e não no espaço sideral ou num trem que é o último refúgio da humanidade num planeta congelado.

Foto: Divulgação/ Warner Bros.
Foto: Divulgação/ Warner Bros.

Quando o título aparece em tela, marcando o fim de uma apresentação mais longa que o normal, e o filme finalmente anda, ele segue em várias direções, e algumas parecem ruas sem saída. É o caso de um triângulo (ou quadrado) amoroso que surge e perde relevância em duas cenas, com Kai (Anamaria Vartolomei), uma de suas integrantes, sumindo logo depois para voltar a aparecer apenas na cena final. A trama é abandonada sem cerimônia, assim como seus dilemas, e o foco é direcionado a outras problemáticas, viradas que passam a ser comuns, algumas com mais a dizer do que outras. A cena do jantar, a exemplo, tem um discurso fortíssimo (e nojento) que não é resgatado no resto do filme, mas serve para reforçar as personalidade dos envolvidos e apresentar dinâmicas que revelam-se interessantes.


Problemas assim poderiam trazer a sensação de que o filme seria melhor amarrado se algumas ideias tivessem sido cortadas ainda no desenvolvimento e o foco estivesse mais bem definido durante a produção, ou mesmo com algumas mudanças na montagem. A verdade, porém, é que, ainda com seus defeitos, a sensação que fica ao sair do filme não é de frustração – pelo contrário, não há vontade de que qualquer elemento seja diferente do que é. Isso porque, por toda a sua duração, com barrigas e discursos prolixos, Mickey 17 nunca deixa de ser interessante. Exagerado, desencontrado, mas interessante.


Mesmo quando os rumos da história confundem e parecem se arrastar mais do que deveriam, o investimento segue porque os personagens e relações cativam de uma forma que torna impossível de não se envolver com seus enredos. Mickey é o clássico fracassado, um poço de inseguranças elevado à 17ª potência, a ponto de ser salvo por criaturas alienígenas e se questionar o que nele não é apetitoso o suficiente para que fosse devorado. Toda a sua falta de sorte e seu repetido e inevitável destino dão graça ao contraste com seu “amigo” Timo, interpretado brilhantemente por Steven Yeun, detentor de um jogo de cintura fora do comum para se livrar de qualquer enrascada, sem falar em uma milagrosa sorte.

Foto: Divulgação/ Warner Bros.
Foto: Divulgação/ Warner Bros.

Se Mickey não pode contar com o suposto amigo, é Nasha (Naomi Ackie) o seu porto seguro. Vivendo numa nave em que roupas são padronizadas, a comida é uma ração repugnante e os ambientes são propositalmente cinza e sem graça, eles desenvolveram algo real, bonito e único. A relação dos dois é física e calorosa num mundo frio, leve e engraçada quando parecem faltar motivos para sorrir. Ela surge como contraponto a todo o ambiente ao redor deles, mas principalmente ao casal Marshall, interpretados por Mark Ruffalo e Toni Collette, responsáveis pela expedição e verdadeiros tiranos.


Eles são o arquétipo dos conservadores de meia-idade norte-americanos: ele, um político fracassado, mas com sua cota de seguidores fiéis, ela, a esposa controladora. Donos de discursos e atitudes asquerosas, os dois sempre aparecem em tela limpos demais, brancos demais, “civilizados” de uma maneira antinatural. Não à toa, o personagem de Ruffalo usa lentes de contato dentárias para sua arcada parecer mais branca e alinhada, enquanto Naomi Ackie expõe sem problemas a separação que possui entre seus dentes da frente, que vêm a ter uma função crucial na trama. Ela representa, de mais de uma maneira, toda a imperfeição que eles abominam e, por consequência, é a maior exemplar de humanidade entre os habitantes da nave.


É essa a resposta de Bong Joon-ho à pergunta sobre o que ele faria a seguir: ele prefere ser imperfeito a se render aos moldes. Se ele tem muito a dizer e nem sempre faz isso com total efetividade, paciência; mas ele não permite que a obra torne-se por um segundo sequer algo que não seja produto da sua imaginação e criatividade. É como estar diante de uma pedra bruta, mas com formato único. Se fosse lapidada, ela ganharia valor de mercado, poderia render muito dinheiro, mas ficaria mais parecida a tantas outras. Em uma era em que tudo é lapidado por algoritmos de preferências e filmes são tratados como conteúdo, lançados em streaming para serem consumidos e não vividos, Bong manteve-se autêntico e fez Mickey 17, uma joia bruta que pode ser tudo, menos dispensável.

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