“De qualquer jeito, não se torne um estranho”
Scott Street | Phoebe Bridgers
“Nei miei sogni ancor ti rivedrò”
Eternamente | Matt Maltese
Por mais óbvio que possa ser, ainda é curiosa a maneira como tudo o que vivemos – desde os toques mais singelos aos eventos mais sublimes – se transforma quase automaticamente em lembrança. Nossa memória parece ser o espaço onde se guarda, se não tudo, quase tudo, independentemente de nossa vontade. Nosso próprio corpo não escapa disso: cada pequeno fragmento de lembrança decalcado na memória escoa por ele e provoca reações – às vezes, permanecem marcas, cicatrizes incuráveis no espaço-tempo, ainda que invisíveis. É desse lugar difuso e paradoxal que parte Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004, dir. Michel Gondry), que encontra na imagem uma reafirmação de sua configuração enquanto experimento admirável de como decupar a mente e a memória por meio de imagens.
O cômodo é frio e o sofá-cama está montado. A janela aberta permite a entrada de uma luz fraca do sol, coberta pela opulência da neve e dos galhos secos de um dia de inverno. Esta é a visão que temos da sala de estar de Joel Barish (Jim Carrey) quando, ao despertar, decide repentinamente faltar ao trabalho e passear pela praia em Montauk. Uma espécie de constelação de melancolia vai sendo construída a partir dessa sequência, interposta pela fala taciturna e quase apática de Joel sobre seu dia e seu desconforto com coisas simples: o arranhão no carro que deve consertar em breve, o estado de desalento provocado pelo Dia dos Namorados, o desassossego ao acordar certa manhã.
Essa dimensão muda quando ele encontra Clementine Kruczynski (Kate Winslet) caminhando – a princípio, na praia; depois, na lanchonete e no trem de volta para casa. À medida que acompanhamos a interação dos dois, tomamos consciência de alguns fatos que nos colocam em uma posição de espectador curiosamente confusa. Assim como Joel, não entendemos o motivo de Clementine não o reconhecer quando se dirige a ela em seu trabalho na livraria, mesmo após a longa história de relacionamento dos dois. A resposta não demora a chegar: descobrimos a existência de um procedimento médico que, a partir de uma arqueologia do cérebro, permite eliminar completamente uma pessoa da memória. Enraivecido e entregue aos próprios impulsos, Joel decide realizar o mesmo procedimento que Clementine – nada mais justo do que também esquecê-la.
Durante a realização da intervenção, nos tornamos cada vez mais conscientes das estratégias narrativas adotadas no longa. As cenas, que acreditávamos seguir uma linearidade dos eventos, mesmo que de alguma forma não parecessem se encaixar – ou o faziam de forma estranha – encontram-se, na verdade, fragmentadas. A sequência inicial pertence cronologicamente ao momento posterior do apagamento mútuo de Joel e Clementine de suas respectivas memórias. Ao mesmo tempo, as lembranças de Joel são constantemente evocadas em nossa incursão pela sua mente “sem lembranças”, não de forma aleatória, mas ainda assim fragmentada, o que é feito de maneira oportuna enquanto somos conduzidos pela travessia de Barish em sua própria mente.
Tomemos como princípio do mundo da psique, conforme exposto no longa, o desejo por esquecer. A tentação por abandonar sentimentos tão dolorosos e restabelecer uma estrutura anterior, supostamente estável e feliz, entretanto, não descarta os efeitos dessa tomada de decisão. O personagem interpretado por Jim Carrey percorre lembranças significativas de sua relação com Clementine. Revisitar esses momentos não apenas se percebe ainda mais doloroso como também traz de volta ao corpo sensações outrora perdidas pelo conflito da relação. Compreendemos, então, que a dor de lembrar é tão somente equivalente à dor de esquecer. No momento em que percebe essas instâncias, dentro daqueles instantes-já capturados pelas imagens da memória, elas são desconfiguradas e destruídas pelos cientistas que mapeiam seu cérebro. A ausência de esperança que sente o protagonista se metamorfoseia, pois, numa mente que, sem lembranças, está fadada a uma existência incompleta, a uma não-existência que implica a perda de parte fundamental da própria subjetividade. Perder o outro torna-se um perder a si.
Intitulei este texto diante de uma confusão, dessas que nos interpõem a memória, julgando ser aquele o nome do longa, em vez de uma mente sem lembranças. Para mim, fez sentido e continua a fazer, como a esperança dialoga com aquilo que guardamos de nossas vivências e o que sentimos a partir disso. De qualquer forma, sente-se uma espécie de provocação ao espectador e à própria condição de sua subjetividade, no sentido de refletir sobre o conflito que reside nos mínimos detalhes de nossa existência, o que demonstra nesse Brilho eterno não uma incursão automatizada pela linguagem do cinema, mas uma abordagem consciente, inteligente e, em sua própria medida, poética.
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