O ritual do casamento é algo emblemático no cinema. Automaticamente, penso na noiva de A Entrevista (1967, dir. Helena Solberg), cumprindo seu papel de subir o altar para encontrar seu destino enquanto “mulher”. Em Maputo Nakuzandza (2022, dir. Ariadne Zampaulo), por outro lado, vemos uma mulher com um longo vestido branco caminhar por linhas férreas, uma noiva que decide tomar um caminho diferente: fugir no dia de seu matrimônio e ganhar as ruas da cidade, em uma lírica de observação. Ao romper seu destino, a noiva ruma até o horizonte, transbordado por um céu escarlate, sem olhar para atrás. Contudo, a vida na cidade não para com a sua fuga: o turista continua a explorar lugares desconhecidos, um grupo de jovens retorna à casa ao fim da festa e mulheres continuam a realizar seus rituais rotineiros dos afazeres domésticos. O cotidiano permanece inalterado aos olhos desatentos.
Em seu primeiro longa-metragem, Zampaulo tece uma verdadeira carta de amor à capital moçambicana. Rodado durante sua estadia na cidade, acompanhamos um dia da vida em Maputo, um lugar com seus hábitos e arquétipos particulares. Indo do amanhecer ao entardecer, a narrativa segue cinco pessoas, formulando uma estrutura alinhada a uma quebra visual e poética através da montagem, cuja sensação ilumina fragmentos que engrandecem a experiência da vida, pela métrica entre poesias e vivências. Marcado pelos afetos que demarcam territórios, a estrutura fílmica, portanto, assume um tom independente, beirando o experimental, solicitando ao espectador a observação atenta desses gestos que produzem laços temporais com o espaço.
O filme possui uma tonalidade temática enfática em questões de gênero, emergentes tanto em Moçambique como no Brasil. A primeira cena, por exemplo, dita o assunto que será travado, ao retratar um grupo de homens saindo de uma festa e se deparando com uma moça desacordada no carro. Um deles menciona e questiona as roupas curtas que ela usa, remetendo aos constantes argumentos de violência física que são disparados regularmente, em diversos panoramas sociais. Dessa maneira, o filme discute temáticas caras a uma cidade que nunca para de crescer e se transformar, mostrando as dores, lacunas, anseios e poesias que se constroem no dia a dia.
Com isso em mente, o fio norteador a unir todos os personagens se dá pelo uso do programa de rádio, escutado por toda Moçambique e que cede o título ao filme, “Maputo Nakuzandza” – traduzido como “Eu te amo”. É por meio da programação que temos acesso ao noticiário, que avisa sobre o desaparecimento da noiva, bem como do aumento de esposas que matam seus maridos de forma defensiva; mais que isso, também opera como apresentação da poesia e das músicas que integram a experiência cultural compartilhada pelos personagens, dispositivo capaz de unificar as vivências daqueles que escutam a programação em situações e lugares distintos.
Similar às composições de obras como Vitalina Varela (2019, dir. Pedro Costa), o filme possui um visual marcado pela justaposição entre luz e sombras, assim como a recorrência à luz natural para assinalar proximidades com a realidade. Nesse sentido, o longa possui fortes intenções em borrar as linhas que separam documentário e ficção, principalmente ao retratar a cidade e seus personagens de maneira tal que beira um cinema verdade, cujo traço explícito reside na naturalidade com que os atores falam, favorecendo uma imersão na cultura e no modo de agir da população. Já no sentido ficcional, a fita conta com duas performances que reafirmam a poesia do cotidiano enquanto ato político, principalmente a realizada pelo performer Domingos Bié, que se vale de um movimento corporal atrelado a um pano vermelho para contar sua história. Os momentos de performances, por conseguinte, funcionam como momento de respiro para a obra, direcionando a narrativa para outros caminhos a serem explorados – como as ruínas da cidade, provocada pela sensação de contato com um passado colonial que permanece visível e tangível no tempo presente.
Maputo Nakuzandza é uma produção entre Moçambique e Brasil, beneficiada pela certeira elaboração de uma moldura capaz de refletir, seja pela poesia ou pelo corpo que atravessa o cotidiano em território africano, espaço pouco conhecido, assistido e discutido em território brasileiro. Ao fim da película, a sensação passada é que encerramos uma verdadeira viagem por Maputo sem sair do lugar, uma prévia de suas formas, texturas, músicas, performances, dizeres e saberes. Tudo isso através do cotidiano que pulsa e atribui aos corpos invisíveis asserções reveladoras.
Entre a poesia de uma cidade e o fio narrativo de vivências que se cruzam no espaço, Maputo Nakuzandza (2022) é um convite perceptivo às ruas e aos corpos que permeiam a capital de Moçambique. Em conversa com Ariadine Zampaulo, a Revista Nostalgia debate com a diretora acerca do seu primeiro longa-metragem, ressaltando as fronteiras do fazer cinematográfico entre Brasil e Moçambique, o cinema de baixo orçamento, os limites entre ficção e documentário e a poesia política do cotidiano;
Luana Campos
Primeiramente, eu queria saber sobre como foi o processo de pesquisa para a realização do filme e como essa ideia surgiu para você.
Ariadine Zampaulo
Eu fui para Moçambique como intercâmbio, durante o meu bacharelado em Cinema na Universidade Federal de Niterói (UFF). Na época, eu já estava interessada em estudar o cinema africano e essa viagem surgiu como uma oportunidade para aprofundar a pesquisa para o meu TCC. Eu já conhecia um pouco da história do cinema de Moçambique e achei muito interessante. O cinema africano, de maneira geral, é uma fonte de inspiração para a gente, e foi algo com o qual eu não tinha tido contato antes. Nunca tinha assistido a filmes africanos e, quando comecei a me deparar com produções tão incríveis, me perguntava: 'Por que a gente não tem acesso a isso?'. Era algo que nunca tinha sido abordado nas aulas de cinema mundial, e ninguém falava sobre o cinema africano. Foi aí que percebi o quanto isso é resultado de um certo boicote cultural.
Eu queria entender como o cinema de Moçambique se desenvolveu, especialmente após a independência, quando o presidente Samora Machel fundou o Instituto de Cinema com o objetivo de proporcionar à população o acesso ao imaginário de seu próprio país. Quando cheguei lá, queria conversar com cineastas que estavam atuando na cidade de Maputo. Eu não estava só interessada na história, mas também em entender o cenário à época, quem eram os produtores de cinema, como estavam produzindo, e o que os jovens cineastas estavam fazendo. Então, eu conheci esses atores que também estavam se formando em Artes Cênicas lá e comecei a ver as produções que eles faziam no teatro. Eu achei tudo maravilhoso e começou a nascer a vontade de produzir algo com eles.
Falei: "Vamos fazer um filme que explore os ambientes da cidade, capturar esses espaços que são tão únicos." E foi assim que começamos a construir as cenas. A inspiração veio de filmes de cidade; se a gente tem New York, I Love You e Rio, Eu Te Amo, por que não Maputo? E foi assim que nasceu a ideia de Maputo Nakuzandza – Maputo, Eu Te Amo. Eu trabalhei nesse processo junto com a Maria Clotilde, que era uma das colegas da universidade. Ela estava se aprofundando mais em dramaturgia e direção e foi uma parceira essencial na criação do filme. A ideia era, de fato, construir esse mosaico. A história está muito mais na conexão entre os personagens do que no aprofundamento de uma história específica ou de um único personagem. E foi isso que orientou a escrita do roteiro.
Luana Campos
Acho que você já começou a falar um pouquinho sobre a outra pergunta que eu ia fazer, que é sobre a sua experiência vivendo na cidade e como isso impactou diretamente a história Eu queria aproveitar o que você mencionou e perguntar: você sente muitas semelhanças e diferenças entre Maputo e o Brasil, ou entre fazer cinema em Maputo e fazer cinema no Brasil?
Ariadine Zampaulo
Fazer cinema envolve muitos desafios. A gente fica pensando, refletindo sobre que tipo de cinema a gente quer fazer. Porque, é claro, lá também tem pessoas que querem fazer um cinema mais hollywoodiano e isso tem gerado um mercado. E acho que isso é algo que a gente compartilha, especialmente com o Brasil, que é ainda mais complexo, por ser tão grande e ter tantos acessos diferentes. E acho que essas experiências, dessas diferentes localidades, mostram como se fortalecer em produções pequenas, locais, que têm muito mais a ver com a realidade e que fazem muito mais sentido para a gente.
Os moçambicanos não pensam que só vão conseguir fazer cinema se precisarem estudar na África do Sul, nos Estados Unidos ou em Portugal. Eles conseguem ver também possibilidades de se desenvolver localmente, no próprio lugar. Hoje, por exemplo, você tem o Net Kanema, que é algo tipo a Netflix dos moçambicanos. Eu realmente peguei um momento de mudança que foi muito interessante de acompanhar. Acho que isso foi algo que influenciou muito a construção do roteiro. Tanto que há uma mistura entre o registro documental e a ficção, quase como se fosse uma performance, uma intervenção dos atores na cidade. Aquele cenário está acontecendo, e a gente vai gravar como um registro documental, mas ao mesmo tempo tem histórias fictícias.
Uma coisa que surgiu durante o processo foi a rádio, que se tornou um elemento para conectar as histórias e os espaços. Sempre gostei muito de ouvir a rádio local e, quando estive lá, comecei a ouvir ainda mais. Eu escrevi cenas com base no que ouvia na rádio e gravei algumas partes com duas radialistas locais, mas fiz muito da construção na pós-produção. A ideia era realmente registrar essa movimentação ao redor, o que acontecia em volta. Isso foi o que foi legal, porque cada take revelava algo novo. O intuito era justamente esse: captar esses momentos espontâneos e naturais, para que eles vazassem para dentro do filme.
Luana Campos
Então, a outra pergunta é mais relacionada ao seu processo de escrita do roteiro e à sua colaboração com a Maria Clotilde. Vocês duas assinaram como produtoras do filme. Quais foram as principais dificuldades que você teve, tanto na escrita do roteiro quanto na parte da produção?
Ariadine Zampaulo
Até hoje Maria não acredita que o filme se transformou depois daquela época. Mas, ao mesmo tempo, foi uma experiência única. Eu dirigindo, produzindo e escrevendo e a gente fazendo todo esse processo juntas. Como ela já trabalhava com produção de teatro, ela já tinha uma rede grande de contatos, o que fez ser possível montar a estrutura do filme. E eu estava nesse processo de conhecer as pessoas que produziam cinema na cidade. Foi quando uma produtora, que apoia jovens que estão começando no cinema, emprestou uma luz para a gente gravar; uma outra produtora emprestou um shutter, outra emprestou o gravador... A gente ia apresentando o projeto, mas, no início, era um pouco difícil. Não tínhamos uma consistência total, então as pessoas ficavam tipo: "Ah, mas a história, o que é? Não tem muito o que contar." E eu falava: "Não, confia, vai dar certo!" Era uma coisa muito entre amigos, então a gente tinha que simplificar ao máximo. Mas depois, quando o filme veio para cá, a estrutura mudou. Uma produtora associada entrou para cuidar da finalização e enviar para os festivais, por exemplo. A estrutura se organizou de fato, e todo o processo de distribuição começou a acontecer.
Luana Campos
Como você comentou antes, você já foi preparadora de elenco e tem familiaridade com o teatro. Como foi esse processo de construção dos personagens e dos diálogos? Foi algo que partiu de você e da Maria, ou foi algo mais coletivo, compartilhado entre todos os atores?
Ariadine Zampaulo
A maior parte dos atores que estão ali eu já tinha visto se apresentarem em alguma peça ou algum outro trabalho. Então, no próprio processo de pensar a atuação, isso já está presente na escolha dos atores e no personagem que eles vão interpretar. Eles já tinham essa naturalidade no atuar, então eu não precisei fazer grandes intervenções na preparação. E a Maria trabalhou bastante na preparação do elenco, principalmente na hora de gravar. Isso foi muito importante para mim, porque como eu nunca tinha dirigido antes, eu estava ali aprendendo. A Maria me dava esse suporte durante a gravação, ajudando a conversar com os atores, discutindo o que cada cena queria transmitir.
Luana Campos
Uma coisa que me chamou a atenção também foi o uso de poemas e poesias que são narrados através da rádio. Queria saber um pouco mais sobre como foi a seleção desses poemas, o porquê deles estarem ali, se há alguma relação entre eles. Você já tinha entrado em contato com o mundo da poesia moçambicana?
Ariadine Zampaulo
Isso também fez parte de grande parte do processo, porque foi também a minha forma de conhecer o lugar. E Maputo tem uma cena cultural realmente incrível, sempre há coisas acontecendo. Sempre tem alguém lançando um livro, alguém com uma exposição... E tem essa cena muito forte da poesia e dos saraus, que eu não conhecia bem antes. O próprio filme, para mim, é uma poesia. Se pensarmos em termos de narrativa, eu não o vejo tanto como uma prosa, mas mais como uma poesia. E para trazer essa ideia para o filme, eu acabei inserindo a poesia na rádio, diretamente, como parte da história. Tem uma poesia da Noêmia de Souza, por exemplo, que é uma poeta da época da independência. Como eu já tinha essa conexão forte com a questão do passado colonial, eu fui desenvolvendo e aprofundando essas questões ao longo do processo de montagem e da escrita da rádio. Eu fui entendendo melhor as coisas que o filme trazia, coisas que, na hora da gravação, eu não estava tão consciente. Mas, depois, fui me conscientizando de algumas coisas e pensei: 'Nossa, está falando muito mais do que apenas a cena em si'. O que a cidade está expressando também, sabe? Esse texto acabou se misturando com a dança, criando uma ligação mais profunda no filme.
Luana Campos
Acho que a noiva é uma figura muito emblemática no filme, trazendo uma questão muito forte em relação às discussões de gênero. Eu queria saber como você vê essas discussões de gênero em Moçambique e como elas influenciam a maneira como são abordadas no filme. A questão da noiva, por exemplo, me remete muito à ideia de fugir de um destino patriarcal, mas também à discussão sobre a violência, seja física ou moral, que permeia a vida das mulheres.
Ariadine Zampaulo
Essa questão surgiu muito da minha observação porque era uma pauta muito forte no momento em que eu estava lá. E isso não partiu só de mim; a Maria também estava propondo muitas coisas para o roteiro que traziam essas questões, então acabou sendo realmente inevitável. A gente vem de outro país, com outra vivência, e tenta pensar sobre a nossa relação com uma sociedade machista, mas como é essa sociedade machista lá, em Moçambique, por exemplo?
Eu li um livro de uma escritora que já veio várias vezes ao Brasil. Ela escreve muito sobre personagens femininas que estão lutando contra questões da sociedade machista e, às vezes, contra tradições que são complicadas para as mulheres. Mas o interessante é que ela tem uma visão crítica que complexifica essa situação, Não é simplesmente 'a mulher é explorada e ponto final', e 'precisamos combater os homens'. Acho que essa era uma discussão muito presente lá também, especialmente nos outros filmes que falavam sobre a questão da violência doméstica. Eu conversava muito sobre isso com os amigos da universidade, e muitos tinham visões bem machistas, mas era interessante poder debater.
No caso da noiva, ela está em um processo de escolha, de decidir o seu caminho, de se livrar de um destino imposto. Ela não querer se casar não impede ela de, por exemplo, ir aos outros casamentos e observar. Não quer dizer que casar seja algo ruim; é só que ela escolheu outro caminho. Acho que tinha essa vontade de não estigmatizar a decisão dela, mas, sim, de expressar que ela poderia escolher caminhos diferentes. Também há uma outra polêmica, que é a questão da moça de pele mais clara, que acaba sendo vista quase como um fetiche. Isso também toca em várias questões enraizadas em relação ao nosso colonialismo. Existem todas essas questões, e eu não queria fechar a discussão de forma simplista. Tem a questão de gênero ali, claro, mas também há uma vontade de abrir um espaço para o diálogo, de entender o que esses personagens masculinos estão vivendo no dia a dia. No final, são mais perguntas do que respostas.
Luana Campos
Uma curiosidade: se você fosse fazer outro filme sobre Moçambique, ou explorar mais de Maputo em um próximo trabalho, qual temática você escolheria? Qual outra história ou tema você gostaria de abordar sobre Moçambique ou Maputo?
Ariadine Zampaulo
Eu acho que não seria o meu foco ir atrás da vivência deles, sabe? Isso é algo que os cineastas de lá fazem muito bem — contar suas histórias, suas famílias, e eu acho isso incrível. Eles têm feito filmes sobre essas realidades, e algumas questões, como a guerra civil, que foi muito difícil, também estão presentes nas narrativas. Mas, quando penso em ideias para novos projetos, sempre me conecto muito com a vivência em Maputo, porque é uma experiência valiosa, e eu vejo que o que se produz artisticamente lá é muito significativo. Existem muitos grupos de teatro que fazem trabalhos excelentes, e eu gostaria muito de colaborar com eles. Maputo é um lugar muito cinematográfico.
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