Entre uma grande fissura de pedras rochosas refletidas por luzes vermelhas, o movimento de câmera nos sobe em direção a um céu estrelado que encobre uma academia. Temos acesso à passagem do subterrâneo da imagem para a sua superfície através do gesto, que recai sobre o corpo e o persegue, nesse momento, por meio de uma mulher que anda em direção a academia em que diversos indivíduos fazem exercícios físicos. Ações de força criam um ritmo das atividades corpóreas que são dispersas através de uma sequência de elipses. Essas são interrompidas, na montagem, pela continuidade dos gestos de trabalho de Lou (Kristen Stewart), funcionária da academia. Ela está limpando o ambiente, enquanto repele tentativas de flerte e aproximações incômodas advindas de Daisy (Anna Baryshnikov), uma frequentadora do espaço e personagem inicial que vemos andando no início do filme. A repulsa de Lou permeia inicialmente as imagens que a compõem através de sua opacidade em gestos cotidianos. A vemos ir para casa dirigindo, alimentar seu gato e fumar na cozinha, enquanto espera seu jantar no micro-ondas.
Seu mistério é refletido nessas pequenas ações em planos dispersivos. Tal nebulosidade irá ser despida ao longo do filme, a partir de seu contato romântico com Jackie (Katy O'Brian), uma jovem fisiculturista recém chegada na cidade, a qual trabalha para o pai de Lou. O desenvolvimento de tal relação faz ambas atraírem complicações entre elas a partir do contato com as imagens subcutâneas. Ou seja, imagens do passado violento da família de Lou expressas em rápidos inserts por ela ter uma repulsa e tentar escondê-las. No entanto, tais traumas imagéticos enterrados ganham uma continuidade e são atraídos para o presente por meio dos gestos de violência de ambas contra o ambiente agressivo em que vivem. As ações são professadas como uma forma de vingança em nome do amor que sentem entre si.
O primeiro contato entre Lou e Jackie se desenvolve a partir da atração de uma conexão gestual feita através da montagem. Enquanto Lou está se masturbando no sofá de casa, somos atraídos pelo corte para Jackie, que está transando no carro com um cara chamado JJ (Dave Franco) para conseguir um emprego na cidade. Ao Rose Glass, diretora e roteirista, optar por essa conexão a partir de uma montagem paralela, cria-se entre as personagens uma aproximação cinematográfica por meio da natureza sexual de seus movimentos. Dessa forma, somos colocados inicialmente como observadores desses gestos autônomos entre elas que se conectam entre si. Por isso, também percebemos a diferença da linguagem existente nos modos de vida distintos entre as personagens antes delas se conhecerem de fato. Ao visitar Beth, sua irmã, Lou permeia por um espaço instável, em meio às diversas ações e vozes que ocorrem simultaneamente. Vemos isso através do uso de uma câmera na mão que acompanha os diversos personagens em cena. Beth arruma os filhos para a escola com a ajuda de Lou, que observa machucados no corpo da irmã, mas não comenta sobre eles.
A presença do marido de Beth, JJ, está em profundidade de campo, assistindo à TV e reprime os gestos dos seus filhos e de sua esposa ao enclausurar eles no enquadramento com a sua aproximação física de intimidade violenta. Lou intervém com repulsa indireta ao plano através da distração de sua presença no espaço. Ele vai embora, mas elas não comentam sobre o ocorrido. Por outro lado, Jackie possui uma linguagem mais estável em seu contato com o espaço do clube de tiro. Através do uso de panorâmicas e travellings, acompanhamos movimentos contínuos do corpo com o seu possível ambiente de trabalho. Apresentada por JJ, ela conhece o pai de Lou, dono do lugar, e amante de armas, diferente de Jackie, que diz preferir utilizar seu próprio corpo. Para Lou, essa evitação sobre o armamento ganha contornos imagéticos subjetivos dela segurando uma arma que se difere esteticamente do seu cotidiano, mas que é inserida nele, através de inserts psicológicos na montagem e de uma fotografia com intensa iluminação vermelha. Temos um curto acesso a imagens que podem revelar sobre o seu passado, mas que expõem um fragmento da ação que colidem com o seu cotidiano imagético.
Enquanto essas visões passadas são reprimidas, no presente, temos imagens de uma atração sexual que surge por meio da observação da funcionária da academia para os gestos da fisiculturista. Essas ações são operadas dialeticamente entre o plano de observar de Lou e o contra plano de ser observada de Jackie. A linguagem do amor entre elas se desenvolve a partir da evolução dessa dialética, que faz com que se aproximem através do gesto. A ação de aplicar injetáveis uma na outra evolui para um beijo, que, por sua vez, transiciona o espaço, através de um corte que dá continuidade ao movimento em sequências na montagem quando Jackie vai morar com Lou. Entre a troca de olhares, sexo, aplicação de injeções, preparo de ovos sem gemas, lambidas no corpo e trabalhos, há uma passagem do tempo a partir do fluxo rítmico dessas aproximações corporais (que lembra a corporalidade cinética do cinema da cineasta francesa Claire Denis). No entanto, dentro dessa conexão corporal, Jackie e Lou passam a absorver e dar continuidade às imagens do passado envolvendo o pai da personagem de Kristen. O Sr. Langston ensina a fisioculturista a atirar e, por meio desse gesto, temos a erupção de inserts que demonstram o assassinato de um homem, executado pelo pai de Lou. Tais imagens de violência fazem parte da subjetividade imagética de Lou e influenciam as atitudes de ambas.
Isso pode ser observado no filme de forma gradativa, como ocorre com Lou quando ela descobre que Jackie tinha transado com JJ para conseguir o emprego de garçonete. Ela pune a outra, mesmo que a fisiculturista não saiba sobre o que ele faz com a esposa e nem conhecia Lou na época, com a justificativa de que as ações delas não são unívocas o suficiente, pertencentes a elas somente. Há um desejo de vingança e controle em suas palavras que passam para os gestos através da obsessão da direção deles pelo toque na masturbação, como uma forma de reconciliação. O controle de Lou é hereditário. Ela está direcionando as mãos de Jackie tal qual o pai dela fez com a fisiculturista quando estava ensinando-a a atirar. No entanto, o gesto aqui é ressignificado em nome do amor.
Tal ambiguidade se torna mais aparente quando Jackie absorve em planos detalhes do seu corpo os desejos de vingança de Lou, expressos em gestos desesperados, pelo que JJ fez a sua irmã, que está internada no hospital por ter sofrido violência doméstica do marido. Como consequência das reações de Lou, a fisiculturista mata JJ e seu corpo se torna maior oniricamente. Durante o ato nos concentramos em observar suas ações efêmeras. Não existe uma preocupação com as repercussões do gesto, somente em eliminar o motivo da dor, através da absorção gestual fugaz da violência presente nas imagens subcutâneas. Essas imagens influenciam os planos das personagens através de sua aparição em inserts de planos fragmentados de dirigir em estradas avermelhadas ou jogar um corpo de uma grande fissura no deserto. Elas evocam uma continuidade nos gestos entre o passado e o presente, como ocorre durante as cenas em que elas se livram do corpo. Lou quer se vingar das violências cometidas pelo pai a partir de uma atração pelas imagens formadas por ele que estão sob a sua pele e que irão ser ampliadas e repelidas, através do uso onírico do corpo por ela e Jackie.
Tal repulsa onírica ocorre não porque há uma negação da violência, mas sim, uma nova representação da mesma ao longo do filme por meio da fantasia do corpo. Ao finalmente ter a chance de se vingar do próprio pai e falhar, Lou é salva por Jackie e captura o Sr. Langston com o seu corpo que ganha uma proporção maior e se torna gigante. Temos uma construção imagética própria da violência como forma de defesa que não se baseia mais em imagens subcutâneas da pele. Lou ainda pode matar o pai com um tiro, ela o machuca com a arma, enquanto diz que o ama, mas possui uma repulsa em relação a matá-lo: é preferível viver o amor entre suas próprias representações imagéticas oníricas com sua namorada, aumentando o tamanho de sua própria anatomia enquanto correm pelo céu juntas e libertas dos antigos gestos da pele.
No entanto, após isso, a última cena do filme nos mostra, que a personagem de Kristen na verdade não rompeu completamente com a violência dos gestos de seu passado ao enfrentar o pai. Isso pode ser observado a partir de sua relação inicial e final estabelecida entre ela e Daisy na obra. No início do filme, a passagem da imagem da grande fissura de pedras do passado de Lou para a superfície se dá através de um movimento de câmera que recai sob o acompanhamento do andar de Daisy. É a partir da curiosidade em conhecer mais sobre Lou que essa nos demonstra sua relação de repulsa com o passado. No final, por meio do enforcamento, Lou termina de matar Daisy como uma forma de romper com o último resquício de seu passado, enquanto Jackie dorme no banco do passageiro. Isso nos mostra que seus gestos podem até ter alcançado novas formas de representação ao longo do filme, como o aumento da proporção do corpo, mas sempre irão repelir o seu passado a partir da atração pela ontologia das ações de violência, que são pertencentes a sua família e registrada em imagens não vistas pela sua namorada, feitas em nome da estabilização do amor entre elas.
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